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Chão Urbano

Chão Urbano ANO VIII – N° 6 NOVEMBRO / DEZEMBRO 2008

01/11/2008

Integra:

ANO VIII – N° 6   NOVEMBRO / DEZEMBRO 2008

Editor

Mauro Kleiman

 

Publicação On-line

Bimestral

 

Comitê Editorial

• Mauro Kleiman

• Márcia Oliveira Kauffmann

• Maria Alice Chaves Nunes Costa

• Viviani de Moraes Freitas Ribeiro

 

IPPUR / UFRJ

LABORATÓRIO REDES URBANAS

LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador Mauro Kleiman

 

Equipe

Aline Alves Barbosa da Silva, Clarice Pereira Lima Green , Simara Guzzo Elias, Priscylla Conceição Guerreiro dos Santos

 

Pesquisadores associados

Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva Márcia Oliveira Kauffmann, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva

 

Artigo

A problemática da habitação e a qualidade de vida nas cidades brasileiras

 Mauro Kleiman

 

 

 

A problemática da habitação e a qualidade de vida nas cidades brasileiras

Mauro Kleiman

 

  1. Introdução

Falar sobre habitação é tratar de um elemento chave da estruturação da cidade brasileira. O tema é amplo e complexo, e trago aqui alguns elementos que me parecem importantes para contribuir para sua reflexão crítica. A questão da moradia tornou-se visível a “olho nu” no país, existem um conjunto de números que lidam com ela (por vezes não comuns), mas creio que precisamos aprofundar o pensamento crítico sobre o tema para poder avançar. Esta é uma questão que, a meu juízo, tem tido poucos avanços na busca de suas saídas, suas resoluções, por uma discussão analítica ainda não plena.

A habitação está incluída na esfera privada mas sendo o lugar da vida íntima, familiar, o lugar de vivência onde estão nossas referências pessoais, ela não se completa sem sua relação com a esfera pública pois está inserida na urbe, depende desta para sua permanência. Os indivíduos devem no seu dia-a-dia sair de casa para trabalhar, estudar, fazer compras, recrear, sem o que estaríamos no isolamento. A casa como lugar de individualidade não poderia exercê-la sem a externalidade. Quem vive na cidade precisa estabelecer uma relação cotidiana com esta para exercer sua cidadania plena. Assim, as possibilidades de uma habitação que permita uma intimização da vida e a acessibilidade e articulação aos pontos de atividades humanas, trabalhar, educar-se, lazer, compras... e aos serviços urbanos: água, esgoto, gás e equipamentos coletivos é que irá determinar o grau de qualidade de vida nas cidades.

Trata-se, então, de pensar aqui o grau de intimização da vida e o grau de relações articuladas com a esfera pública que pode-se verificar na habitação das cidades brasileiras. Para tal vou trabalhar com a relação entre moradia e o modelo que dita o ordenamento e configuração de nossas cidades, e seu padrão de urbanização, para trazer elementos para a nossa reflexão.

 

      2.  A gênese da questão

A questão da habitação no Brasil tem suas raízes no peso econômico-político diferenciado por classes sociais onde uma restrita camada apropria-se das riqueza gerada pelo coletivo e de seus benefícios, e nas intervenções urbanas desde o início do século XX, que ao reformar as cidades renormatizam seu uso. As reformas relocalizam as classes sociais no espaço urbano fazendo uma “expulsão branca” dos pobres dos centros históricos sob a égide de um urbanismo higiênico-estético embelezador/viário, com demolições de cortiços, casas-de-cômodos, arrasamento de morros, onde estavam as casas dos pobres, sem qualquer política de habitação para repor sua moradia, mesmo que em outra área da cidade.

No final dos anos 20 e meados dos anos 30 do século XX a introdução do zoneamento (criação de áreas de especificidades dentre dos limites precisos, definidos AD HOC e a priori, isto é sem ouvir ninguém além dos técnicos) ratificaria a posição de cada classe social no espaço urbano, apontando para os pobres que não poderiam localizar-se no núcleo da metrópole e sim em áreas periféricas, ao mesmo tempo mais distante quanto menor fosse sua renda.

O zoneamento introduz-se como parte instrumental do modelo progressista de base racional funcionalista como aquela forma hegemônica de intervenção nas cidades brasileiras. Este modelo, cuja base repousa sobre a existência de um homem-tipo que como tal possui necessidade materiais, necessidades – tipo, que, portanto não reconhece diferenças entre lugares e indivíduos (não há classes), sendo reprodutível em todos os lugares e momentos da mesma forma, mas que trabalha exatamente através de rigorosa dedução científica de todas as atividades e funções urbanas para determinar o uso da cidade segundo as diferentes classes sociais. Para o modelo é “natural” que a camada de mais renda, por ter o maior peso socioeconômico, obtenha e aproprie-se de benefícios de urbanização dado sua condição e força política. Por outro lado trabalha com uma determinada tipologia habitacional e urbanística. A casa é standartizada, tem beleza austera, estará toda construída a partir das medidas de um homem-tipo universal. De modo que a estrutura urbana deriva do edifício (e este de uma célula), e esta demarcada pelo ordenamento (ordem) de todos os elementos no espaço urbano delimitados em perímetros precisos por zonas – os prédios em super blocos independentes vazados por vazios e verdes, e a divisão dos lotes assim como a standartização das casas faz-se de maneira a obter-se a maior rentabilidade possível na sua construtibilidade. O modelo traz uma política seletiva restringindo a áreas de alta renda a infra-estrutura de redes e serviços de água e esgoto. Assim como a articulação das partes da cidade, sendo feita pelo automóvel, coloca a questão de qual classe pode mover-se no território criando-se uma mobilidade restrita.

De modo que estes dados, desde os anos 30 do século XX define parâmetros para a cidade e a habitação, que demarcam fortemente o que pode e não pode, e onde cada classe pode localizar-se.

Diante da situação criada isto é da emergência de uma questão da moradia percebe-se nas cidades seus efeitos, ou seja, o aparecimento de casas precárias (“humildes” como chamavam) nos “interstícios” da estrutura urbana – terrenos devolutos, de duvidosa titularidade; da União; nos morros; nos alagadiços. O Estado face a situação, pode-se observar que tomará duas atitudes: de um lado parte para uma configuração de política habitacional, e de outro para uma não política ou ausência de política.

A política habitacional não configura-se de imediato como algo geral, planejada, com coordenação de ações, e tendo uma base financeira, e sim como política setorizada e atomizada nas carteiras de crédito imobiliário dos fundos de Previdência e Pensão, por categoria profissional, cujo o acesso é portanto restrito aos associados que tenham renda de três salários mínimos e grandes famílias. Ainda assim fez 170.000 unidades em conjunto de prédios assentados no modelo progressista.

A segunda iniciativa, nos anos 40, a Fundação da Casa Popular, propõem-se a construção de moradia para famílias grandes, com 5 filhos, e dependia de dotação orçamentária da União, tendo como objetivo a casa própria, como meio de legitimação do governo frente às camadas populares “deixadas ao léu como presas ao perigo vermelho” atraídas então pelo PCB. A política atenderia a baixa renda, mas exigia que o solicitante tivesse 3 salários mínimos, grandes famílias, com no mínimo 5 dependentes. Além disso, o acesso era limitado por número de inscrições restritas, informação precária, prazos curtos (tinha-se que dormir nas filas, e havia uma reserva técnica para atender políticos num esquema clientelista), afinal e resultou em apenas 17.000 unidades construídas.

 

      2.2- Não-política habitacional

Para aqueles realmente pobres - de baixa renda ou sem rendimentos de empregos formais o Estado praticou a omissão, não formulando nenhuma política habitacional, no denomino não-política habitacional.

Diante da ausência de política os pobres tiveram que partir para a auto-construção tanto de moradia, como de infra-estrutura pois todos precisam de teto e água. Esta autoconstrução, que significa sobretrabalho, teve como efeito uma tipologia habitacional e urbanística diferenciada – pequenos volumes grandes densidades, casas precárias improvisadas. A casa é o prioritário, de modo que os pobres construindo as casas o que sobra é rua, criando assim uma outra estrutura urbanística. A ausência de infraestrutura, ou ela auto-construída, configurou, por sua vez, práticas cotidianas diferenciadas daquelas camadas que tem acesso a água e esgoto, desenhando uma outra cultura e outra sociabilidade. Leva-se a lutar-se diariamente para pegar água e escoar as águas servidas e faz com que o indivíduo despenda tempo para isto em detrimento de outras atividades, tenha o tempo fragmentado, descontínuo, tenha que inserir-se várias vezes ao dia no domínio público levando a uma externalização da vida. Colocam-se expostos a doenças na mistura entre água e esgoto, ou, ainda, autoconstroem redes alternativas clandestinas, o que implica na inserção no domínio público para projetos coletivos, deixando as camadas populares à margem da cidade.

De modo que relacionando o modelo instaurado de determinar a tipologia habitacional e urbanística com ordenação e zoneamento, e a política habitacional e de infraestrutura voltada para as camadas de maior renda, com o padrão que os pobres implantaram, verifica-se que existe uma nítida colisão entre os dois, para o qual o Estado brasileiro sempre procurou solucionar pela “forma” em detrimento do “conteúdo”. Fez isto tentando enquadrar as áreas populares no modelo progressista removendo-as, derrubando as casas, reformando a estrutura urbanística, mas ainda quando faz assim o fez de tal maneira restritiva por faixas de renda, exigências de emprego formal, etc. que quem era pobre permaneceu à margem da cidade oficial.

 

      3 – Conclusão

Para que a habitação tenha ou readquira sua função social na política de desenvolvimento das cidades tem-se a (difícil) tarefa de inverter a política urbana (tomada como um todo). Isto porque, em primeiro lugar a casa tem que ser pensada e construída com o entendimento de sua articulação com infra-estrutura água-esgoto mas também coleta de lixo, drenagem, e educação (pois novos equipamentos implicam em novos custos).

Em segundo lugar deve-se ter em conta que a configuração que os pobres construíram – outra tipologia habitacional, e estrutura urbana, implicou num modo de vida diferenciado, nada trivial em relação com outras camadas  sociais que tem urbanização, e não basta tentar enquadrá-los em outras normas, renormatizando, a vida e sim, de fato, inseri-los por ações positivas e  políticas progressistas (não no sentido do modelo progressista), distributiva e que leve em conta a outra cultura e sociabilidade que desenvolveram na ausência de política.

Em terceiro lugar essas questões remetem a que precisamos pensar na substituição da ausência de planejamento por um retorno ao mesmo, mas compreendê-lo no âmbito metropolitano, resgatá-lo como um planejamento metropolitano.

A qualidade de vida nas cidades brasileiras não será recuperada, num grau de viabilidade, sem enfrentarmos a atual dissociação entre a moradia como esfera privada e sua articulação com a cidade como esfera pública.

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