OS TRANSPORTES METROFERROVIÁRIOS E O PROCESSO URBANO NO RIO DE JANEIRO | Chão Urbano

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OS TRANSPORTES METROFERROVIÁRIOS E O PROCESSO URBANO NO RIO DE JANEIRO

A ESTRUTURAÇÃO URBANA FLUMINENSE: BONDES E TRENS

As três últimas décadas do século XIX representaram para o Rio de janeiro um período de forte expansão urbana, sendo esta conduzida em prol da reprodução do capital nacional e internacional. A inauguração do trecho inicial da estrada de Ferro Central do Brasil, em 1858, veio permitir a ocupação de vários pontos do subúrbio carioca. No final da década de 1860 a implantação das linhas de bondes de tração animal veio viabilizar a expansão do tecido urbano para as zonas sul e norte da cidade. 

Os trens e os bondes participaram efetivamente do processo de expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro, porém de forma diferenciada. Os trens serviram à pontos da cidade mais distantes do centro, ocupados por um grupo alijado da área central e sem condições financeiras de habitar os locais mais próximos daquela. Os bondes por sua vez viabilizaram o deslocamento das classes mais abastadas para novos pontos de ocupação na cidade, como a zona sul, por exemplo. Além disso esse meio de transporte também atuou de forma efetiva nos chamados subúrbios ferroviários (FERNANDES, 1996). Isso, de certa forma, acaba contradizendo a afirmação de que tais subúrbios foram servidos apenas pelo trem. Exemplo típico desse processo, segundo Fernandes (1996), foi a Companhia Ferro-Carril Vila Isabel, que prolongou seus trilhos até o Engenho Novo em 1875. Os bondes tiveram importante atuação não somente na ocupação de parte da cidade como também sobre o padrão de acumulação do capital (ABREU, 2006). Prova disso foi o grande capital cafeeiro empregado na construção de imóveis nos locais atendido pelo bonde e o capital internacional provendo de infra-estrutura urbana as áreas por onde passavam os bondes. Muitos bairros surgiram como produtos da ação conjunto desses dois tipos de capitais.

Esses dois meios de transportes participaram assim do crescimento urbano da cidade, bem como de sua reprodução, facilitando o estabelecimento de um quadro complementar entre centro e subúrbio. Ferreira dos Santos (in ABREU, 2006, p. 44) esclarece:

    Trens e bondes foram sem dúvida, indutores do desenvolvimento urbano do Rio. Mas o caráter de massa desses meios de transporte tem de ser relativizado, como também devem ser relativizados os seus papéis frente ao ambiente urbano. É que trem, bondes e, mais tarde, ônibus (e os sistemas viários correspondentes) só vieram “coisificar” um sistema urbano preexistente, ou pelo menos um sistema de organização do espaço urbano, cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica do espaço e que apenas esperavam os meios de concretização. Em outras palavras, o bonde fez a zona sul porque as razões de ocupação seletiva da área já eram “realidade”... Já o trem veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres ( indústrias, por exemplo).

 

Conectando o alto da Tijuca com a Praça Tiradentes, a primeira linha de bonde (tração animal) foi instituída em 1859. No inicio da década de 1860 locomotivas a vapor começaram a substituir os animais, circulando até por volta de 1866, quando entraram em regime de falência. No ano de 1868 foi concedido à Botanical Garden Railroad Company o primeiro trecho de uma linha de bonde a tração animal, cobrindo a área do Centro ao Jardim Botânico. A primeira parte dessa nova linha ia da rua do Ouvidor ao Largo do Machado. Ao atingir o bairro do Jardim Botânico a linha de bonde já servia também ao elegante bairro de Botafogo, moradia de famílias abastadas.

Várias outras empresas do ramo de transportes por bonde surgiram depois da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, levando o domínio dos bondes também em direção à zona norte. O transporte esboçava assim o seu papel na estruturação urbana da cidade, servindo de instrumento à reprodução de seus modelos sócio-espaciais.

A companhia de São Cristóvão atendia os bairros do Rio Comprido, Caju, São Cristóvão e Santo Cristo, enquanto os bairros de Vila Isabel, Andaraí e São Francisco Xavier eram atendidos pela Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel. Esta última surgiu a partir de uma concessão do governo em favor do Barão de Drummond, para que este implantasse uma linha de trilhos urbanos partindo do Centro para os bairros do Andaraí, Grajaú, Maracanã, Vila Isabel, Engenho Novo e São Francisco Xavier. Algumas outras linhas ligavam estações ferroviárias com áreas urbanizadas, evidenciando assim um certo sistema de distribuição e a composição inicial de uma rede de transporte, na época já muito importante para a reprodução do espaço urbano.

Neste contexto torna-se fundamental ressaltarmos aqui a ação do Capital Imobiliário a partir dos investimentos no sistema de transportes. Cardoso (1986) nos afirma que todo o Vale do Andaraí, conhecido hoje como o bairro do Grajaú, foi fruto do empreendimento de duas empresas imobiliárias que ali atuaram, dando origem a dois loteamentos. O mais antigo, que foi denominado Grajaú, foi um dos projetos imobiliários da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções, e o mais recente, denominado Vila América, foi criado pela Empresa T. Sá e Companhia (CARDOSO, 1986). Ainda segundo a autora, a atuação da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções não se restringiu apenas ao Grajaú e a produção de moradias. Ela também atuou em vários outros bairros do Rio de Janeiro, ora abrindo ruas e avenidas, ora saneando, loteando e vendendo grandes áreas, ou seja, atuando também como promotora fundiária (CARDOSO, 1986). Era notória assim a articulação existente o Capital Imobiliário e Fundiário e as companhias de transportes sobre trilhos da época, onde estas atuavam no sentido de proporcionar novos padrões de acessibilidade e mobilidade a certos locais da cidade. Cardoso (1986) ainda destaca dois outros fatos importantes que ocorreram no início do século XX: de um lado, houve a eletrificação das linhas de bondes, desestimulando, portanto, o plantio de capim que era feito no Vale do Andaraí para a alimentação dos animais utilizados anteriormente na tração dos carros; de outro, o crescimento da população carioca e a ampliação das camadas médias estimulavam a urbanização de novas áreas, agora dotadas de melhores e maiores padrões de acessibilidade e mobilidade intra-urbana.

Entre as décadas de 1870 e 1890 a cidade do Rio de Janeiro foi marcada por um crescimento em direção aos locais servidos pelos bondes das Companhias de São Cristóvão e do Jardim Botânico, zona norte e zona sul da cidade, respectivamente. Um bom exemplo disso foi a relação entre o bonde e o processo de loteamento em Vila Isabel.  Abreu (2006, p. 44) sobre isso nos diz:

    A associação bonde/loteamento é bem exemplificada em Vila Isabel, onde o bonde demandava o bairro do mesmo nome, criado em 1873 pela companhia arquitetônica, de propriedade de Drummond, em terrenos outrora pertencentes à família imperial (fazenda do macaco). Esse loteamento se destacava dos demais que se faziam na cidade, por suas ruas largas, a exemplo das cidades européias, dentre os quais se destacava o Boulevard Vinte e Oito de Setembro.

 

Na vertente sul da cidade o efeito do bonde não era menor. A abertura do túnel velho em Botafogo, em 1892, serviu para que as linhas de bondes a tração animal pudessem alcançar o trecho de Copacabana ao Leblon, antes pontos sem qualquer acessibilidade. As atenções do mercado se voltavam agora para os possíveis usos residenciais do solo nas áreas praianas. Percebe-se aqui uma estreita relação entre transporte e uso do solo. Com a implantação do bonde movido a tração elétrica, em 1892, pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, circulando no trecho entre a praia do Flamengo e a rua Dois de Dezembro, o serviço atinge o leme, graças à abertura pela Ferro-Carril do túnel novo, condicionando definitivamente a expansão urbana da cidade rumo a zona sul.

Os bondes elétricos revolucionaram os costumes da cidade, fazendo com que seus habitantes mais abastados se transferissem progressivamente das acanhadas ruas do centro em direção as praias da zona sul e dos espaços menos densos da zona norte (BARAT, 1975), demonstrando assim um aumento da mobilidade e acessibilidade, dois fatores primordiais para a reprodução dos capitais que comandaram tais processos, onde o setor de transporte foi a peça-chave que viabilizou e concretizou inúmeras ações.

Os bondes assim já contribuíam para uma certa segregação sócio-espacial, atendendo aos ditames de uma série de capitais, os quais buscavam na estruturação do espaço urbano uma maneira eficaz de reproduzir seus lucros, onde o transporte era apenas um fator, mas de elevada importância. A reprodução da força de trabalho também era um dos objetivos buscados com a estruturação do sistema de bondes, tão intenso e significativo como viria a ser o trem mais tarde.

Os trens suburbanos no Rio de Janeiro surgiram pouco tempo depois da chegada das ferrovias no Brasil. A ação dos trens na cidade foi diferenciada do papel dos bondes, embora mantivesse a mesma essência. Enquanto estes serviam às áreas já com um certo grau de urbanização e fragmentação espacial, aqueles adentraram locais com características fortemente rurais, pouco ou quase nada integrados à urbe.

A primeira linha de trens suburbanos, a Dom Pedro II (Central do Brasil), foi instituída em 1858, cujo trecho inicial ia da atual Praça Cristiano Ottoni até Queimados, num total de 48 km (BARAT, 1975). Em seguida, Engenho Novo e Cascadura ganharam suas estações, o mesmo ocorrendo com Nova Iguaçu, na época Maxambomba, todas abertas em 1858. A partir de 1860, conforme se incrementava a mobilidade populacional no sentindo centro-periferia, outras estações foram inauguradas, como Piedade, Riachuelo, Sampaio, Engenho de Dentro, Todos os Santos, São Francisco Xavier e Madureira, está última já em 1890.

Nesse contexto o transporte ferroviário começa a exercer uma forte influência na reprodução do espaço da cidade. Abreu (2006, p. 50) comenta:

A existência de uma linha de subúrbios até Cascadura incentivou de imediato a ocupação do espaço intermediário entre esta estação e o centro. Antigas olarias, curtumes, ou mesmo núcleos rurais, passam então a se transformar em pequenos vilarejos, e atrair pessoas em busca de uma moradia barata, resultando daí uma elevação considerável da demanda por transporte e a conseqüente necessidade de aumentar o número de composições e de estações.

 

Um novo espaço começava a configurar-se, onde fatores como circulação, mobilidade e acessibilidade ganhavam uma importância não atribuída antes. A efetiva separação dos locais de trabalho e residência tornou o sistema de transporte elemento caro à produção, fazendo dele um aspecto primordial também na reprodução           sócio-espacial, garantindo farta mão-de-obra à nascente indústria no Rio de Janeiro e segregando o espaço urbano.

Reflexo disso foi a disponibilização em 1870 de mais dois trens diários para atender a linha de Cascadura, explicitando assim, o papel valioso desempenhado pelo transporte ferroviário no espaço citadino da época. Tal medida, tomada principalmente em favor dos empregadores e outros setores do capital, como por exemplo, os loteamentos, buscou otimizar os horários do transporte com o período de entrada e saída dos locais de trabalho. Esse processo acentuou ainda mais a urbanização dessa faixa da cidade, dando origem a novas estações a partir de 1880, como Rocha, Derby Club, Quintino, Mangueira e Encantado, locais estes que passavam a abrigar uma força de trabalho fundamental para o capital. O ir e vir diariamente nos deslocamentos            casa-trabalho-casa, não eram apenas simples movimentos, eram parte de um cotidiano estabelecido para atender ao novo sistema.

O reflexo dessas ações sobre o espaço foi bastante significativo. Abreu (2006, p. 50) destaca:

O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a principio, uma forma tipicamente linear, localizando-se as casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras ou por pequenas companhias loteadoras, dando início assim a um processo de crescimento radial, que se intensifica cada vez com o passar dos anos.

 

Noronha Santos, falando sobre Inhaúma, expressou-se assim sobre o assunto:

    De 1889 para cá, Inhaúma começou a progredir dia a dia, edificando-se em vários pontos da vasta e populosa freguesia confortáveis prédios, que podem competir com os melhores das freguesias urbanas. Foram retalhados os terrenos das antigas fazendas que ainda existiam. Bem poucos vestígios ficaram daqueles tempos em que o braço escravo era o cooperador valioso da fortuna pública e particular (NORONHA SANTOS, 1965, p.77 ).

 

 

Outras ferrovias foram implantadas e igualmente à D. Pedro II influenciaram sobremaneira no crescimento suburbano da cidade. A Estrada de Ferro do Rio do Ouro, onde o tráfego iniciou-se em 1883, tinha em sua concepção original a função de levar para Tinguá os materiais necessários para a construção de uma nova rede de captação de água para a cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde o transporte de passageiros também passou a ocorrer na Rio do Ouro, sem, contudo, ter o mesmo vulto que a D. Pedro II. Mesmo assim algumas localidades se desenvolveram no seu eixo, como Inhaúma, Vicente de Carvalho, Irajá, Colégio, Coelho Neto e Pavuna.  Foi ao longo dessa antiga linha férrea que no final do século XX estabeleceu-se a linha dois do metrô carioca, com repercussões diferenciadas em alguns bairros, viabilizando novos processos.

Mais significativa que a Estrada de Ferro do Rio do Ouro foi a atuação da Estrada de Ferro da Leolpodina, instituída em abril de 1886 pela Rio de Janeiro Northern Railway Company. Seu trecho inicial, entre São Francisco Xavier e Duque de Caxias, gerou uma grande acessibilidade entre alguns núcleos e o centro da cidade. Entre esses núcleos destacam-se Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, Penha, Ramos, Olaria e Bonsucesso, os quais alcançaram certo grau de desenvolvimento a partir da ferrovia. Com o novo esquema de circulação novas relações foram estabelecidas entre eles e a área central da cidade. O capital lançava seus tentáculos sobre a região agora servida pelo trem. Mais uma vez Noronha Santos nos serve de base para elucidação do tema:

  Quatro trens de subúrbios trafegavam diariamente antes de 1897 na única linha que existia até Meriti (Caxias), com desvios em Bonsucesso, Penha e Parada de Lucas. O primeiro núcleo de habitantes dessa zona que mais acentuadamente prosperou foi Bonsucesso. Esta localidade e as de Ramos, Olaria e Penha, em pouco tempo, entre os anos de 1898 e 1902, tiveram os seus terrenos divididos em lotes, organizando-se simultaneamente empresas para a construção de prédios. Ramos transformou-se em empório comercial e num dos centros de maior atratividade na zona da Leopoldina Railway. (NORONHA SANTOS, 1934, p. 496 e 497).

 

Por fim, em novembro de 1893, entrou em funcionamento o primeiro trecho da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil, que no início do século XX receberia o nome de Linha Auxiliar, após ser incorporada à Estrada de Ferro D. Pedro II (Central do Brasil). O trecho inicial ia da Mangueira até Sapopemba (atual Deodoro), viabilizando assim a incorporação de novas áreas residenciais e industriais, seguidas da construção de novas estações, como Del Castilho, Magno e Barros Filho.

 


[1] Mestre em Geografia Pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza estudos sobre sistemas de circulação e processos de reordenamento espacial intra-urbano.

 

A figura nº 1 nos mostra como ficou estruturada a rede ferroviária no Rio de Janeiro em fins do século XIX, refletindo a atuação do transporte sobre trilhos no crescimento da cidade.

                Figura nº 1 – Rede Ferroviária do Rio de Janeiro no Final do Século XIX

Fonte: ABREU, Maurício de Almeida. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro, 2006.

 

Aureliano Portugal (in ABREU, 2006, p. 53) diz:

    A continuidade espacial da cidade já é um fato visível no início do século XX. O Eixo da E. F. Central do Brasil é repleto de moradias, com inúmeras ruas e vielas, cuja atuação do transporte incorporava à cidade.

Para o autor o mesmo aconteceu nos trechos servidos pela E. F. Leolpodina, Linha Auxiliar e Rio do Ouro. Aureliano complementa afirmando que esse espaço suburbano dependia em vários aspectos do centro da cidade, onde a população que trabalhava nessa área central era em sua maioria a mesma que habitava aqueles rincões. No decênio 1886-1896 cerca de 30 milhões de passageiros passaram pela estação Central do Brasil, numero esse que se comparado aos mais 70 milhões de pessoas transportadas pelos bondes em um único ano, não representava muito. Para Noronha Santos, entretanto, isso já era o esboço de uma crise dos transportes no final do século XIX. Sobre isso ele afirma:

 

     A crise do transporte não ficou circunscrita ao bonde. Nos trens de subúrbios constituía, já naquela época, um verdadeiro martírio viajar pela manhã ou a tarde. O povo acotovelava-se nas estações principais, debatendo-se em horas de maior afluência de passageiros, como se fosse um bando de lutadores ofegantes, para alcançar um lugar no trem, onde se apinhava gente de toda casta. (NORONHA SANTOS, 1934, p. 314).

 

Os subúrbios cariocas achavam-se em pleno crescimento no final do século XIX, porém como uma função quase que unicamente de núcleos dormitórios, o que demonstra o importante papel do transporte como elemento da reprodução das relações sociais de produção, tornando mais eficaz o uso da força de trabalho que agora reside longe do mesmo.

A partir de 1886 a demanda por transporte ferroviário explode. No período entre 1890 e 1910 concretiza-se a ocupação dos subúrbios, o que ocasionou uma nova distribuição populacional, onde o transporte ferroviário atuou como um importante fator de crescimento urbano. Para Barat (1975) os níveis de movimento de passageiros dos trens influenciaram menos no desenvolvimento da cidade, quando comparados ao bonde. Porém, Barat (1975) defende que os trens suburbanos foram decisivos para o crescimento populacional de freguesias mais afastadas do centro, como Inhaúma e Irajá, contribuindo assim para a formação da metrópole fluminense.

Outro aspecto que merece destaque foi a eletrificação da Estrada de Ferro da Central do Brasil, na década de 1930. A partir dessa inovação muitas estações constituíram-se em vários bairros, ligando-os definitivamente à área central e consolidando a região metropolitana.

Percebemos assim que a cidade do Rio de Janeiro teve em grande parte seu crescimento metropolitano orientado pela expansão do transporte público, com destaque para o ferroviário. Com a implantação de um sistema de transporte eficaz e moderno para a época, a cidade atingiu já na década de 1930 um considerado grau de complementaridade e integração, fatores estes imprescindíveis para uma rede de transporte eficaz.

No Rio de Janeiro daquela época bondes e trens constituíam o sistema principal de transporte de massa. Essa concepção de modalidades ligadas funcionalmente, viabilizando a articulação dos deslocamentos cotidianos, influenciou significativamente nos diversos usos do solo estabelecidos no espaço urbano do Rio de Janeiro.

Esse processo ocorreu em uma época na qual começava-se a estruturar uma divisão sócio-espacial na cidade do Rio de Janeiro. Precisamos ter em mente que os transportes ferroviários não foram em si os únicos responsáveis pela ação de segregação do espaço urbano carioca, sendo apenas instrumentos com uma determinada finalidade. Pensando o espaço como um sistema de objetos e ações, conforme definiu Milton Santos (1996), tivemos no Rio de Janeiro uma ação conjunta entre o Estado, o setor de transporte e o capital imobiliário. Nesse sentido compreendemos que esse conjunto de ações e atores refletiam uma concepção político-ideológica da época, caracterizada pela estruturação de um espaço que viabilizasse os paradigmas capitalistas que se estabeleciam no Brasil. O espaço refletia assim sua natureza eminentemente política. Lefebvre (1972, p. 14) aborda a questão da seguinte maneira:

    O espaço é um instrumento político intencionalmente manipulado, mesmo se a intenção se dissimula sob as aparências coerentes da figura espacial. É um meio nas mãos de “alguém”, individual ou coletivo, isto é, de um poder (um estudo), de uma classe dominante (a burguesia) ou de um grupo que tanto pode representar a sociedade global quanto ter seus próprios objetivos, como os tecnocratas, por exemplo.

 

O espaço concebido e produzido no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX estabeleceu representações que na verdade serviam à uma estratégia concebida, projetada e espacializada. Estratégia essa ligada primordialmente a reprodução de um espaço que viabilizasse a reprodução das relações sociais de produção, tendo os transportes como uma de suas peças primordiais. A segregação espacial daí resultante seria falsa e verdadeira ao mesmo tempo. Os pontos do espaço urbano que aparecem separados, na verdade não o são quando vistos no conjunto da (re)produção, pois só a ação em conjunto desses pontos (locais) reproduzem o sistema. A segregação torna-se assim ideológica, aceitando-se a dissociação daquilo que nunca sobreviveria se estivesse separado. Abandona-se, assim, a unidade concreta que constitui a sociedade burguesa e aceita-se a ilusão que é posta em seu lugar (LEFEBVRE, 1972).

A análise do Rio de Janeiro é emblemática. A concessão de linhas de bondes aos empresários tornava-os proprietários das terras a elas adjacentes, ou então conseguiam uma concessão de linha para as terras que já possuíam. Em seguida viriam os loteamentos dirigidos à burguesia. O Estado, como ator provedor de infra-estrutura, investia alto nesses locais, em detrimento de outros pontos já habitados. Copacabana e Ipanema evoluíram a partir desse sistema.

No caso das ferrovias o processo se invertia, mas não se desvinculava das ações que implementavam os bondes. Com um crescimento demográfico em ascensão no fim do século XIX e uma contínua expulsão dos miseráveis para os subúrbios, o trem vem com o objetivo de disponibilizar essa força de trabalho para a indústria. Repetimos que o transporte por si só não explica a estrutura urbana, apenas a compõe, cabendo também uma consideração habitacional e tarifária, de onde advêm os loteamentos e os preços acessíveis das passagens.

A cidade do Rio de Janeiro, a partir de certo ponto de sua evolução metropolitana, começa a sentir os impactos do crescimento demográfico, seguido de dificuldades de ordem física e financeira para implementar novos projetos ou aperfeiçoar sistemas já existentes. Esse quadro gera um diferencial acentuado entre demanda e capacidade, trazendo danos para aspectos como complementaridade e acessibilidade, repercutindo negativamente na própria dinâmica da metrópole. É a partir desse quadro de dificuldades que irão surgir os planos urbanísticos para a cidade, de onde sairá pela primeira vez a idealização de um transporte rápido sobre trilhos: o metrô, proposto pelo Plano Agache na década de 1920.

 

Uma Relativização da Relação Centro-Periferia na Cidade do Rio de Janeiro: o metrô

O transporte metroviário, proposto inicialmente pelo Plano Agache na década de 1920, concretiza-se finalmente em agosto de 1967, após mais de quarenta anos de embates políticos e econômicos, quando o Consórcio Alemão CCN-HOCTIEF-DECONSULT vence a concorrência e é contratado para realizar o Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica do Metropolitano do Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, foi entregue e aprovado o relatório preliminar que propunha duas linhas de metrô para a cidade. A primeira (linha 1) seria entre Ipanema e Tijuca, considerada como prioritária, com 13,2 km de extensão, em traçado subterrâneo, devendo ficar pronta até fins de 1975. Partindo de Ipanema essa linha prioritária ligaria os bairros mais densamente edificados da zona sul ao centro da cidade, terminando na Tijuca, onde promoveria igualmente a ligação com os centros dos bairros altamente povoados da zona norte, os quais se encontravam distantes das linhas ferroviárias do subúrbio. Na estação do metrô da Central haveria um ponto de contato com a estação de trens da Central do Brasil, a mais solicitada das estações ferroviárias suburbanas. Uma segunda linha (linha 2), com cerca de 22 km de extensão, partiria do bairro da Pavuna, seguindo pelo antigo leito da Estrada de Ferro do Rio do Ouro até o Centro da Cidade, para, a partir daí, através de um túnel de aproximadamente 4 km de extensão sob a Baía de Guanabara (pré-metrô 2),  chegar até a Cidade de Niterói. Este último trecho entre o centro da cidade e Niterói foi abandonado mais tarde em virtude da opção pela construção da Ponte Rio-Niterói, o que melhor satisfaria alguns setores econômicos, com o mercado imobiliário, por exemplo. Uma terceira linha também chegou a ser planejada, ligando o bairro da Penha a Jacarepaguá. Em meados da década de 1970, após a fusão e criação do Estado do Rio de Janeiro, as linhas 1 e 2 passaram a compor o que se chamou de Rede Prioritária Básica do Metropolitano do Rio de Janeiro. Para os fins deste artigo trataremos apenas de alguns aspectos ligados à linha dois do metrô.

Na cidade do Rio de Janeiro, certas áreas periféricas servidas pela linha dois do metrô despontam a partir da década de 1990 como áreas potenciais para as ações do capital, ressaltando, assim, a importância dos transportes de massa nesse processo, onde a própria relação centro-periferia tende a ser redefinida, visto que agora algumas dessas áreas ditas periféricas tornam-se o lócus de novos investimentos e ações por parte dos capitais. Nesta redefinição centro-periferia, a desconcentração é explícita em locais cada vez mais distantes do centro, onde as vias de transporte tornam-se elementos decisivos na funcionalidade presente na atual relação centro-periferia, ou seja, a desconcentração está diretamente relacionada à fatores como acessibilidade e mobilidade.   

O projeto metroviário carioca, de acordo com dados da Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro, foi concebido a partir de duas premissas fundamentais: otimizar a circulação das massas (trabalhadores/consumidores) e disponibilizar novas áreas para as ações do capital, dotadas de um melhor padrão de acessibilidade e mobilidade intra-urbana, relativizando assim os obstáculos impostos pelo binômio distância-tempo e permitindo estabelecer uma frente interna de recomposição dos investimentos e lucros na cidade, com novas áreas cambiáveis para o capital. A implantação do metrô na cidade do Rio de Janeiro ocorreu progressivamente ao longo das décadas de 1980 e 1990 (SILVA, 2008), condizente, assim, com o momento no qual as metrópoles passam a expressar a crise do fordismo e a serem planejadas para a realização da nova economia de acumulação flexível (SILVA, 2011). Dados do estudo de viabilidade realizado em 1968 pelo Consórcio Alemão CCN-HOCTIEF-DECONSULT, mentor do metropolitano carioca, conforme já dito, apontam o transporte metroviário como uma operação altamente desejável, principalmente pelo “efeito urbano estruturante” que daí poderia advir. Nesse processo, teríamos uma espécie de “urbanismo de resultados” (ASCHER, 1995), aproveitando, no caso da linha dois, uma estrutura e configuração espacial já existentes, visíveis em dois aspectos complementares: uma grande via férrea já consolidada, a antiga Rio do Ouro e uma faixa lindeira de considerável densidade populacional, pontuada por bairros caracterizados por uma estrutura herdada do fordismo, com antigas áreas industriais decadentes ou em desuso. Tal conjunção de fatores potencializariam a dinamização e valorização de algumas áreas periféricas da cidade, prevalecendo então a noção de rentabilidade sócio-econômica nas decisões de implantação do metrô. Isto traria uma certa segurança aos gestores e investidores, onde as razões do sucesso ou fracasso do metrô dependiam não apenas dos seus custos, mas sobretudo dos seus “efeitos urbanos futuros”. O transporte metroviário, melhorando a acessibilidade e mobilidade intra-urbana, permite uma modificação na escala de produção da cidade, possibilitando recriar lugares e polarizações, ou a extensão e transformação de espaços já existentes, influenciando sobremaneira na localização de algumas atividades e serviços, ainda que de forma pontual e fragmentada, onde novas estratégias de investimentos urbanos produzem novas necessidades de fluxos, impondo um reordenamento espacial à cidade. Isto, de certa forma, mesmo que ampliando os desequilíbrios intra-urbanos, uma vez que reproduz e requalifica as desigualdades entre espaços equipados e não equipados, renovados e degradados (COMPANS, 1997), enseja um novo olhar e posicionamento ante a relação centro-periferia na cidade. Isto posto, certas áreas da cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1995, emergiram como pontos de forte atração de comércio e serviços, além de empreendimentos imobiliários e os Shopping Centers, atribuindo novos sentidos à urbanização (CLARK, 1991) e recolocando a discussão da organização interna das cidades, de modo a alterar a lógica de produção do par dialético centro-periferia (SPOSITO, 1999), possibilitando a requalificação de algumas áreas periféricas urbanas, as quais assumiriam novas configurações e novas lógicas que garantissem a velocidade de reprodução do capital, através de novos usos e ocupações do solo (SILVA, 2011), tornando a questão da centralidade mais complexa  (FRÚGOLI  JUNIOR, 2006).

No caso específico da linha dois do metropolitano carioca, a ação do capital, ao contrário do que muitos afirmam, não se reduz apenas a buscar sua força de trabalho mais longe e retê-la por mais tempo em suas instituições (diminuição do tempo de viagem; redução dos atrasos dos funcionários e das ausências causadas por engarrafamentos e acidentes; uso econômico dos ganhos de tempo), visto a nova noção de espaço-tempo criada com o transporte metroviário (SILVA, 2008), mas também através de pesados investimentos, principalmente nos setores imobiliário e comercial, os quais se fizeram e se fazem sentir de forma mais incisiva nas áreas constituídas pelos bairros de Del Castilho, Vicente de Carvalho e Vila da Penha (Figura nº 2), a partir de 1995.

 

                  Figura nº 2 – Linha Dois do Metrô do Rio de Janeiro

A construção de dois grandes Shoppings Centers (Nova América e Carioca), ambos em áreas refuncionalizadas, antes ocupadas por atividades industriais (aproveitando áreas ociosas e antigas edificações), contíguas às estações metroviárias de Del Castilho e Vicente de Carvalho, respectivamente, dinamizaram aquelas áreas e influenciaram no seu entorno, configurando novos pontos de concentração-acumulação e atratividades, em termos de fluxos, serviços, comércio, lazer e condomínios residenciais, voltados para uma classe média em ascensão, contrastando com o cenário de estagnação em outros trechos da linha dois (SILVA, 2008). Revalorização e desvalorização revelam-se aqui faces do mesmo processo, alimentando-se uma da outra e dando corpo ao sucesso do setor imobiliário (SALGUEIRO, 2005).

Em Del Castilho, o Shopping Nova América, inaugurado em outubro de 1995, localiza-se na confluência do eixo da linha dois do metrô com a via expressa Carlos Lacerda (Linha Amarela), ocupando a edificação da antiga Companhia Nacional de Tecidos Nova América, evidenciando assim o peso de fatores como acessibilidade e mobilidade na escolha de sua localização. O Nova América foi o primeiro empreendimento a ter uma passarela interligando seu espaço interno diretamente ao metrô, o que, após acordo com o Metrô-Rio, ocasionou uma reforma na estação de Del Castilho, criando uma identidade visual semelhante à do shopping, revelando assim o interesse do empreendimento em aumentar ainda mais o número de clientes que ali chegam via metrô, repercutindo num processo de expansão que já dobrou seu tamanho desde a sua inauguração. A primeira ampliação, no ano 2000, levou à criação de um centro empresarial com 153 salas comerciais e à atração do escritório regional da White Martins. A partir de 2011, o Grupo Ancar Ivanhoe, que administra o Shopping Nova América, deu início a um novo processo de expansão para dobrar o tamanho do empreendimento para aproximadamente 120 mil m², numa área adjacente à estação metroviária de Del Castilho. Com um investimento entre R$ 280 e R$ 500 milhões, o plano inclui 128 novas lojas, três edifícios corporativos com capacidade para 21 empresas, três torres comerciais de 15 pavimentos cada e um total de 914 salas, dois hotéis e um mega condomínio-clube residencial. As novas lojas e o condomínio-clube deverão ser entregues em outubro de 2012 e, no primeiro semestre do ano seguinte, será a vez das torres de escritórios, das áreas de negócios e dos hotéis. Segundo o superintendente do Nova América, o shopping recebe hoje cerca de 50 mil pessoas por dia, com previsão de chegar a 80 mil após a conclusão do projeto. Ainda de acordo com a superintendência do shopping, o fato de haver um acesso direto a partir da estação do metrô Nova América/Del Castilho, por onde passam 400 mil pessoas por mês, é um dos grandes pontos viabilizadores do plano de expansão.

Em Vicente de Carvalho a chegada do metrô em 1996 foi determinante para sua dinamização, pois otimizou o afluxo de usuários de bairros da redondeza. Como exemplo de valorização e renovação comercial, podemos citar a inauguração em maio de 2001 do Carioca Shopping, num ponto limite entre os bairros de Vicente de Carvalho e Vila da Penha, na antiga área utilizada pela fábrica da Standard Electric, local que antes estava abandonado e ocupado por população pobre.

A Exemplo do Nova América, o Carioca Shopping também localiza-se num ponto estratégico de confluência de vias: a linha dois do metrô e a importante Avenida Vicente de Carvalho, a qual faz a ligação do bairro com Madureira por um lado e com a Penha por outro, corroborando o peso do par acessibilidade-mobilidade em sua decisão locacional. Após sua inauguração, segundo empresas imobiliárias do local, os imóveis da redondeza tiveram um aumento de preços superior a 30%, e a maioria do comércio local, ocupado até então por botecos e quitandas, foi substituído por lojas de Pet Shop, salões de beleza, restaurantes, faculdades, casas de entretenimentos, cursos de idiomas, redes de serviços diversos e mesmo as lojas que permaneceram, como padarias e bares, sofreram reformas, melhorando seus espaços físicos (Jornal O globo, 2002). Também na confluência da linha dois do metrô com a Avenida Vicente de Carvalho, numa área anexa à estação metroviária, encontra-se sediada desde outubro de 2007 a 1ª filial da Rede de Serviços Atacadão na cidade do Rio de Janeiro (antes hipermercado Carrefour), num espaço outrora ocupado pelo depósito da Mesbla. Ainda na Avenida Vicente de Carvalho, o antigo prédio da Fábrica de Enceradeiras da Lustrene passou por um intenso processo de refuncionalização, abrigando hoje um imenso complexo de serviços da Rede Parmê Restaurantes. A Vila da Penha, bairro limítrofe com Vicente de Carvalho, e servido diretamente pela estação metroviária deste, tem crescido vertiginosamente, recebendo nos últimos anos empreendimentos de importantes construtoras que vêm modificando a paisagem do bairro em meio a edifícios de condomínios que permeiam a região. O bairro é um dos que mais crescem na cidade e possui hoje um grande mercado imobiliário. Dados da Associação dos Dirigentes das Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI-RJ, 2011), revelam que a Vila de Penha ficou entre os cinco bairros com maior número de lançamentos na cidade do Rio de Janeiro em 2010, com 904 novas unidades. Tal tendência é mantida atualmente ante a previsão de entrega para abril de 2012 do mega condomínio-clube Pátio Carioca, em construção num terreno de 20 mil m² ao lado da estação do Metrô de Vicente de Carvalho e do Carioca Shopping, considerado desde já como o “gigante residencial da região”.

 

Considerações Finais

Analisando a maneira como se deu a expansão do tecido urbano na cidade do Rio de Janeiro, verificamos que esta ocorreu em função principalmente das necessidades de novas atividades produtivas, o que somente seria possível a partir de boas condições de acessibilidade e mobilidade intra-urbanas.  

A forma como ocorreu o fenômeno da urbanização na cidade, progressivo e irradiado a partir de um núcleo histórico que se dilatava ou se reproduzia com soluções de continuidade, só foi possível pela introdução de inovações no sistema de transportes ferroviários, que atribuíram novos índices de acessibilidade e mobilidade intra-urbanas. Inovações tecnológicas como o bonde, trem, e mais tarde o metrô, bem como melhorias na rede viária, estão estritamente ligadas à mudanças na economia. Foram assim imposições do econômico, ocasionando expansões do tecido urbano (formas e funções), necessárias para que houvesse local para novas residências e/ou implantação de novas atividades produtivas, o que só seria realizável através da existência de meios que garantissem acessibilidade e mobilidade. 

A expansão urbana no Rio de Janeiro ocorreu através de vetores bem nítidos, os quais materializaram-se acompanhando as linhas básicas do sistema de transporte ferroviário urbano. A acessibilidade e mobilidade daí resultantes contribuíram de forma decisiva para a divisão entre segmentos e zonas da cidade, construindo uma base sócio-espacial na qual o sistema de circulação correspondente só veio materializar uma organização do espaço urbano cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica, esperando apenas os meios para sua concretização, e também reprodução. O bonde fez a zona sul da cidade porque as razões de ocupação seletiva da área já eram uma realidade à busca de expressão. Quando o bonde deixa de ser necessário é colocado de lado, sem prejuízo para a ocupação que continuou de forma intensa. Quanto ao trem, este veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres, como a industrial, por exemplo. Neste caso, como não havia a mesma dinâmica transformadora, os lugares servidos pelo trem não foram ocupados além de determinados limites e o trem como meio de transporte chegou mesmo a involuir, mas não chegou a ser dispensado, sendo revigorado mais tarde.

Trem e bonde no Rio de Janeiro surgiram quase como símbolos opostos, representando assim os dualismos básicos e complementares da estrutura da cidade. O bonde chegou a participar de forma efetiva da dinâmica urbana na zona norte e subúrbios, mas o trem nem mesmo no nível de planejamento chegou à zona sul. O primeiro desapareceu eliminado pelo “progresso” que ajudou a criar e o segundo entrou em decadência por longo tempo, de certa forma pelos mesmos motivos, sem contudo desaparecer. O trem mostrou-se tão eficiente quanto o bonde, só que de uma eficiência voltada para a reprodução da força de trabalho. O trem, quanto mais se caracterizou por longo tempo como a mais barata, a mais de massa e até mesmo a pior opção de transporte do Rio de Janeiro, mais serviu às camadas desfavorecidas economicamente e conferiu o caráter funcional dos bairros aos quais serviu e serve de acesso, atuando assim de forma expressiva na reprodução das relações sócio-espaciais urbanas capitalistas.

No caso do transporte metroviário, processo mais recente, o exemplo da linha dois aqui apresentado, ainda que não esgote outros espaços e eixos de valorização na cidade, revela uma dinâmica espacial urbana relativamente recente na capital fluminense, razão pela qual considero-o tipologicamente significativo para a compreensão comparativa de diferentes expressões de centralidade, não autorizando mais que se trate a estrutura espacial da cidade com o esquema simplificado centro-periferia, permitindo, ainda que muito prematuramente, enxergar uma participação velada e funcional do metrô na atualização do fenômeno urbano na cidade do Rio de Janeiro, viabilizando a requalificação e valorização de algumas áreas periféricas urbanas. Como resultado de um processo, está claro que essas novas áreas requalificadas não estão necessariamente no centro geográfico da cidade, sendo necessário deduzi-las e defini-las a partir de uma análise da dinâmica sócio-econômica da cidade. No domínio da construção do urbano surgem novas formas para viabilizar a reprodução do capital (SALGUEIRO, 2005), requalificando áreas periféricas da cidade articuladas a uma estrutura de transporte metropolitano, através de novos serviços, centros comerciais (shoppings), condomínios residenciais, Instituições de ensino superior, pólos gastronômicos, centros de cultura e lazer, polarizando assim novas centralidades funcionais e pontos de considerável valorização fundiária, estabelecendo um novo contexto na relação centro-periferia na cidade. Na lógica da relação centro-periferia, as novas áreas dinâmicas questionam a antiga posição subalterna da periferia, ou do próprio termo periferia, onde, considerando uma relação hierárquica entre os lugares intra-urbanos, a periferia estaria subordinada ao centro. Entretanto, diante desses fenômenos urbanos recentes no Rio de Janeiro, o que seria a periferia uma vez que existem áreas servidas pelo metrô e distantes do centro que passaram e ainda passam por um processo de requalificação e valorização? Tais questões ensejam a continuidade da presente análise.

 

 

 

 

 

 

 

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Autor: André Luiz Bezerra da Silva