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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XIV - Nº5 SETEMBRO/OUTUBRO 2014

31/10/2014

Integra:

ANO XIV – N° 5 SETEMBRO /OUTUBRO 2014

 

Editor

Mauro Kleiman


Publicação On-line

Bimestral


Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional)

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. em Planejamento Urbano e Regional) - UFF

Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Doutourando em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

 

LABORATÓRIO REDES URBANAS

LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador Mauro Kleiman

 

Equipe

Camila Campos do Vale, Marina Moura, Paula Alves e Priscilla Tavares.


Pesquisadores associados

Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviani de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, PricilaLoretti Tavares e Fernanda da Cruz Moscarelli

 

 


ÍNDICE

A cidade no espaço e os espaços da cidade.

 Flávia Hilário Cassiano e Valéria Zanetti......................p.3

 


 

A CIDADE NO ESPAÇO E OS ESPAÇOS DA CIDADE

[1]Flávia Hilário Cassiano¹

Valéria Zanetti²

 

RESUMO

O espaço aqui é entendido como dimensão social das transformações ocorridas na sociedade, pertinentes às necessidades humanas, sociais, econômicas e institucionais, as quais traduzem a complexidade dos arranjos estruturais existentes nos espaços públicos, mais especificamente nos espaços da cidade. A cidade é o espaço intenso de conflitos, de intensas lutas pelo poder, de ideologias, de crenças e diferentes identidades sociais que demandam da necessidade humana e do próprio sistema capitalista. As cidades são espaços onde as coisas acontecem, mudam, se perpetuam, se transformam. O planejamento urbano precisa considerar o aspecto interdisciplinar “do fazer” técnico e político, pois as cidades no espaço são extratos dos espaços que compõem as cidades. Descobrir os espaços da cidade permite entender o dinamismo que expressa e evidencia os elementos humanos imbricados nas propostas de mudanças sociais perpassando pela conjuntura histórica, política e econômica do país.

PALAVRAS-CHAVE: Espaço, Cidades, Memória, Sujeitos, Mudanças, Transformações.

A CIDADE NO ESPAÇO E OS ESPAÇOS DA CIDADE

“A cidade pulsa, sente, sofre, deseja! A cidade é o lugar que o espaço ofereceu para ter suas ruas de pedras, seus muros, sua segregação, mas acima de tudo, suas fontes de possibilidades”. (Flávia Hilário Cassiano, 2013).

À luz da proposta de trabalho apresentada na disciplina de “Cidade e Memória” do curso de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional da Universidade do Vale do Paraíba, no primeiro semestre de 2013, de ”pensar a cidade como espaço de memória ou sob o prisma de lugar que aloja a representação simbólica do passado, materializada no seu patrimônio histórico concebido como importante referência da relação orgânica entre passado e presente que precisa ser repensado a partir da dinâmica social do espaço”, foi possível alargar os olhares e estabelecer diferentes compreensões sobre a proposta.

Foi possível entender, como futuros planejadores urbanos, que a cidade, enquanto espaço físico nos apresenta imagens de permanência e estabilidade e ao mesmo tempo rompe o silêncio através do aspecto dinâmico de mudanças de “ordem” e “desordem”, sendo necessário para a perpetuação da análise da política socioespacial.

A cidade é mais do que um espaço físico, é um espaço socialmente produzido, e, portanto, político. Existem no espaço elementos a serem compreendidos numa abordagem dialética, ou seja, o espaço concreto e o ambiente construído expressam questões objetivas, mas de ordem subjetivas. Pois, conforme (HALBWACHS, 2006) “quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem... Não é o indivíduo isolado, é o indivíduo como membro do grupo, é o próprio grupo que, dessa maneira, permanece submetido à influência da natureza material e participa de seu equilíbrio.”

Há uma relação direta entre a memória do espaço e o elo que nos prende sempre a um grande número de sociedades, globais, virtuais, locais, regionais. A cidade considerada apenas como o espaço físico é também frequentes espaços de poder, conflitos, lutas e identidades. Assim, conforme (HALBWACHS, 2006), “as ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos”.

Então, a cidade deve ser compreendida como espaço que comporta a sociedade. Ela não é estática, compõe-se de uma intensa arena de relações sociais e históricas que dividem a cidade sob diversas lógicas. A cidade é onde tudo acontece. É onde os agentes sociais traçam suas lutas, suas necessidades e suas diversas maneiras de viver, de pensar. A cidade é muito mais complexa do que imaginamos. Ela diz tudo o que deseja, e se nos apropriarmos de sua história, podemos ressignificar seus espaços através da memória social que construímos. Por isso, conforme (POLLAK, 1992), “acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos, personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos”.

Há várias portas para chegarmos à cidade. Por meio das diferenças de classes; por meio dos sujeitos sociais que a compõem; por meio das manifestações culturais. Dança, música, comida, linguagem, são formas de viver que especificam o lugar e o identificam, mas que não estão isentas das diferentes contradições, portanto, conforme (HALBWACHS, 2006) “nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros”.

Planejar a cidade, como observou (CERTEAU, 1994), significa “ao mesmo tempo pensar a própria pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento do plural: é saber e poder articular”. Essa articulação propõe uma racionalidade urbanística para com a cidade, ou seja, tratar a cidade como um “espaço que constitui uma realidade objetiva, um produto social em permanente processo de transformação. Que impõe sua realidade; por isso a sociedade não pode operar fora dele” (SANTOS 2008).

As mudanças que ocorrem no espaço da cidade nem sempre estão associadas à sobrevivência da rotina de um grupo, de um bairro, do modo urbano de se estabelecer. Na maioria das vezes, as mudanças ocorrem devido às inovações do sistema capitalista, da especulação imobiliária, da comercialização mundial e dos extratos que isso impõe à sociedade, à cidade, nas formas de compreender o espaço e ocupá-lo, muitas vezes de maneira permitida ou não, ou ainda “espaços que contém um tempo”, como assinala Paul Ricouer (1998).

Esse espaço da cidade e as cidades no espaço nos remetem também, não apenas ao espaço físico a ser ocupado, mas principalmente aos espaços subjetivos determinados pelo estruturalismo institucional, pelas regras, pelas normas, pelos padrões, por convenções que estamos condicionados a cumprir por definições de ordem governamental e privada. Tudo isso são, na verdade, formas geradas de regulação social que nos permitem ou não o acesso às mudanças necessárias.

Portanto, os lugares de memória de uma cidade são lugares de história. História e memória, tratadas por (PESAVENTO, 2008), como narrativas do passado que presentificam uma ausência, reconfigurando uma temporalidade escoada.

Assim, ao analisarmos a dinâmica da cidade e de seus agentes sociais, ou melhor de seus cidadãos, temos que nos ater ao movimento vivo da cidade e de seus espaços, não apenas como uma obra de processos técnicos que a organizaram, mas também como forma de tentar entender ao menos “os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada” (CERTEAU,1994).

Podemos considerar, portanto, que os comportamentos individuais e coletivos do cotidiano constroem na verdade um contexto singular nas cidades, podendo ser consideradas regulações cotidianas que vão sendo construídas, organizadas e escritas pelos cidadãos de maneira a manifestar uma “ordem” ou não para determinada memória coletiva.

(CERTEAU, 1994) ressalta que olhar este cotidiano implica em enxergar as diferentes nuances da experimentação que permeia os espaços do urbano. O espaço é visto como uma múltipla história escrita, cujas “redes dessas escrituras avançam e entrecruzam-se, sem autor nem espectador, formados em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra”.

O que (CERTEAU, 1994) nos faz pensar, é que não podemos negar os aspectos abstratos do espaço, apresentada nas características humanas de seus cidadãos, uma vez que essa abstração define na construção do cotidiano e a espacialidade da cidade.

Essa identidade social das cidades, construída a partir de um processo de memória individual e coletiva, traduz nossas ressignificações diante do cotidiano e propõe passos futuros em direção ao desconhecido. Seleciona vivências e imagens, que jamais ignora a importância dos fatos que se renderam ao processo da história.

Segundo (PESAVENTO, 2008), a memória de uma cidade é também boato, o ouvir dizer, o relato memorialístico que se apóia não só na lembrança pessoal de quem a evoca, mas também naquilo que foi contado um dia por alguém cujo nome não mais se sabe.

Portanto, as diferenças de classes, de conflitos existentes das contradições nascidas nos processos históricos, sociais, econômicos nos mobilizam o pensamento não apenas para as páginas lidas dos jornais, das revistas, das literaturas em geral, mas também nos proporciona referências ao espaço concreto que se insinua sobre as cidades e seus espaços como forma de manifestação do “fato urbano-humano”.

Ainda conforme (PESAVENTO, 2008) “cidade é uma obra do homem que se apropria do espaço; se a cidade é, por assim dizer, uma vitória da cultura contra a natureza, a cidade é ainda paisagem, uma paisagem social.”

“A cidade”, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número infinito de projeções do cotidiano, nas propriedades estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação. (ORLANDI, 1999).

De um lado, existe uma diferenciação e uma redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos, etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui, portanto os “detritos” de uma administração funcionalista (anormalidade, desvio, doença, morte etc.). Pois, o progresso permite reintroduzir uma proporção sempre maior de detritos nos circuitos da gestão e transformam os próprios déficits (na saúde, na seguridade social etc.) em meios de densificar as redes da ordem. Mas, de fato, não cessa de produzir efeitos contrários àquilo que visa: o sistema do lucro. Este gera uma perda que, sob as múltiplas formas da miséria fora dele e do desperdício dentro dele, inverte constantemente a produção em “gasto” ou “despesa”. Além disso, a racionalização da cidade acarreta a sua mitificação nos discursos estratégicos, cálculos baseados na hipótese ou na necessidade de sua destruição por uma decisão final. Por isso, ela é ao mesmo tempo maquinaria e o herói da modernidade. (CERTEAU, 1999).

Sob a ótica da gestão, a cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um campo de operações programadas, controladas. Sob os discursos que a ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem identidade, legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional - impossíveis de gerir. (ORLANDI, 1999).

O que atualmente os estudiosos socializam acerca da cidade no espaço e os espaços da cidade, é que há mais teoria sobre a gestão das cidades, do que realmente “o fazer”. Nos espaços da cidade, os acontecimentos, os lugares, as diversas paisagens retratam a forma que a memória pública se estabelece. São espaços que, mesmo silenciosos, repercutem uma memória seletiva que constitui um objeto de disputa em relação às fronteiras físicas, temporais, tanto no sentido físico quanto de uma memória construída social e individualmente.

A cidade e seus espaços são projeções do real simbolizada por meio da abstração. A interação entre o ideal e o real, tendo como referência o visual, a fala, os sons, a paisagem urbana, os olhares, as opiniões, o próprio silêncio, devem ser tratados no espaço, com o espaço, para o espaço e no tempo de cada espaço. Isso nos remete a uma análise dinâmica daquilo que existe entre o antigo e o novo, tarefa engenhosa e difícil de entender as edificações e os novos traçados, mas também de valorizar as pessoas da cidade que se vê e a que não se vê, oculta e esquecida; o tempo que passa e o que não passa; o tempo da cidade que se quer, dos desejos, das utopias perdidas e projetos não realizados, e o da cidade que se tem, resultante de fracassos e vitórias.

A cidade é obra humana no espaço, é uma paisagem social organizada por diversos olhares e reveladora da apropriação social do território. Assim, eis o desafio de decifrar as cidades e seus espaços com suas linguagens silenciosas, seus labirintos, traços de entrada e saída, caminhos que mais confundem do que guiam; seu emaranhado de ruas e principalmente, a grandeza de sua “gente”.

Acreditamos que não há possibilidades de transformações mais homogêneas se não forem valorizados os interventores do espaço nas cidades. São na verdade os agentes do urbano que são detentores do saber e do poder de transformar a cidade, de redesenhá-la, destruí-la, edificá-la, preservá-la ou remodelá-la segundo as diretrizes da política.

Mas, conforme (PESAVENTO, 2008), para além destes interventores, cabe resgatar os chamados consumidores do urbano: aqueles que ali vivem, trabalham e transitam. Homens comuns, cidadãos da urbe. Portanto, eles também transformam e produzem a cidade com suas vidas, evitando a relegação da “memória subterrânea”, aquela referente às minorias, dominadas ou sem vez ou voz na sociedade, pois é preciso preservar a memória e “salvar o esquecimento” para reconstruir nossa identidade social.

Podemos afirmar que a cidade está circunscrita na história e na política, nos negócios e eventos, nas culturas, nos sons e silêncios, na arte e monumentos, num tempo que é compreendido como uma sucessão de “agoras”.

Esse artigo pretende retratar parte de uma memória compartilhada por sujeitos, espaços e tempos vivenciados nos Vales mineiros do Jequitinhonha, do Mucuri, do Rio Doce e Norte de Minas. Para tanto, valemo-nos das narrativas de Ítalo Calvino em seu livro “As cidades Invisíveis” (1972) quando descreve a cidade de Leandra. Embora longa a descrição, ela é fundamental para estabelecermos correlação entre a cidade Invisível de Calvino e as cidades dos Vales mineiros:

“Deuses de duas espécies protegem a cidade de Leandra. São tão pequenos que não se consegue vê-los e tão numerosos que é impossível conta-los. Os primeiros vivem nas portas das casas, na parte de dentro, perto do cabideiro e do porta guarda- chuvas; nas mudanças, acompanham as famílias e se instalam na nova moradia no momento da entrega das chaves. Os outros vivem na cozinha, escondem-se de preferência sob as panelas, ou na lareira, ou no armário das vassouras: fazem parte da casa e, quando a família que habitava ali vai embora, permanecem com os novos inquilinos; talvez já estivessem ali antes da existência da casa, no meio do mato do terreno, escondidos numa lata enferrujada; se a casa é demolida e em seu lugar se constrói um prédio para cinquenta famílias, multiplicam-se e ocupam a cozinha de igual número de apartamentos. Para distingui-los, chamaremos os primeiros de Penates e o segundo de Lares.

Dentro de uma casa, não se pode dizer que os Lares estejam sempre com os Lares e os Penates com os Penates: frequentam-se, passeiam juntos nas cornijas de estuque, nos tubos do termossifão, comentam os fatos das famílias, discutem com facilidade, mas também podem se dar bem por anos; ao vê-los reunidos, não se distingue qual é um e qual é outro. Os Lares viram passar por suas casas Penates das mais variadas proveniências e costumes; aos Penates, cabe disputar aos cotovelos um lugar ao lado dos formalíssimos Lares de ilustres palácios decadentes ou com os Lares suscetíveis e desconfiados de casebres de latão.

A verdadeira essência de Leandra é argumento para intermináveis discussões. Os Penates acreditam ser o espírito da cidade, mesmo se chegaram no ano anterior, e que levam Leandra consigo quando emigram. Os Lares consideram os Penates hóspedes provisórios, inoportunos, invasivos; a verdadeira Leandra é a deles, que dá forma a tudo que contém, a Leandra que estava ali antes da chegada desses intrusos e que restará depois que todos partirem.

Eles tem em comum o seguinte: sobre o que acontece na família e na cidade, sempre encontram motivo para rir, os Penates zombando dos velhos, dos bisnonos, dos tios-avós, da família de então; os Lares de como era o ambiente antes que fosse arruinado. Mas não se pode dizer que vivem apenas de recordações: fantasiam projetos sobre a carreira das crianças quando crescerem (os Penates), sobre como poderia transformar aquela casa ou aquela zona (os Lares) se estivessem em boas mãos. Prestando atenção nas casas de Leandra, especialmente a noite ouve-se o intenso tagarelar, as repreensões, as trocas de motejos, bufos, “risadinhas irônicas”.

Por meio de Leandra vislumbramos outras tantas cidades visíveis e reais, espaço da história, da memória, da centralidade, dos esquecimentos, das lutas, do poder, do descaso social, político e econômico.

As cidades do Vale do Jequitinhonha e do Mucuri no Estado de Minas Gerais marcaram uma construção profissional e pessoal. Através delas entendemos que existe uma identidade social particular de cada cidade, mas existem similaridades que são comuns a todas elas: as desigualdades e o desinteresse político.

 

   

MEMÓRIAS DE MINAS POR CASSIANO, FLÁVIA H.

“Cada lugar, de fato, tem uma ou mais histórias para contar, isto é, eles estimulam a memória das pessoas”. (SEEMANN, 2002-2003)

Imersa às lembranças dos traços do caminho percorrido durante quase dez anos, no período de 2001 a 2011 nos interiores de Minas Gerais, me propus a fazer uma descrição sobre as similaridades existentes nesse espaço, nesses lugares. Durante épocas diferentes, paisagem holística aonde o vai e vem dos nossos passos podem reger nossa geografia e, portanto, a memória pessoal influenciada por tantas outras memórias socialmente construídas.

Talvez os deuses que protegem a cidade de Leandra não sejam os mesmos que olharam para essas cidades pelas quais passei, mas, com certeza, são deuses de muito poder, pois diante de tantas desigualdades pífias assombrando esses lugares, podemos presenciar a esperança de se ter uma garrafa de champanhe para o Natal e uma veste branca para celebrar com um sorriso e um abraço a paz que está em cada um. Não no espaço que os circundam, mas no espaço que se criou e ninguém percebeu talvez ninguém saiba.

Nesses espaços, há um intermitente jogo de interesses cristalizados pelos oligárquicos pródigos desde séculos de história que expatriarcam aquelas geografias. Trata-se de pessoas que permanecem nas portas de suas casas, à beira do fogão à lenha ou perdido em meio à fumaça que contagia dentro de suas casas, procurando o que comer, tomando seu aperitivo, varrendo o quintal, andando pelas estradas empoeiradas, fazendo a mudança do vizinho, chegando do trabalho, tomando um café, arriando seu animal, buscando seu filho na escola, fugindo dos inoclastas e reforçando a memória coletiva.

O espaço percorrido é trazido pela memória que conduz a uma intensa identidade social dos lugares onde tive o prazer de viver, não apenas de passar com os olhos da janela do ônibus, mas também ter as roupas empoeiradas de influências de lugares que chamei de pedaços do Brasil, não nosso, mas de alguns que ao afluir suas riquezas “materiais” são impedidos de coligir as partículas de imensa riqueza de espírito, existente, pertencente aos moradores desses lugares.

O que sempre incomodou nas idas e vindas desses lugares é que mesmo havendo tantas mentes brilhantes de inteira capacidade para promover a equidade nesses espaços, de um perfil aretê foram assolados pela reacionária ganância de poucos, que desvirtuaram as possibilidades e as transformaram numa verdadeira supressão.

Acredito que nem mesmo o tempo espera o tempo, refinado dos momentos que passam e acontecem. Esses deixam as marcas de uma enraizada matriz, que muitas vezes, o depois não mais pode ser, porque o hoje não se fez aquilo que de mais necessário tinha por fazer, reconhecer o poder da virtude daqueles que sobrevivem de seus sonhos para viver.

Quando em Leandra, as pessoas que vivem na cozinha, escondem-se nas panelas, recordo-me dos espaços de convivência diária, habitados por muitas pessoas, recordo-me dos muitos “barracos”, onde a estrutura arquitetônica das moradias não se trata de alvenaria, mas sim de bambu e barro, coberto de sapé. Nessas moradas, a cozinha, a sala, o quarto se tornam um só espaço para muitas pessoas, sem privacidade nenhuma, detalhe, embaixo de uma mesa dormia uma menina sobre um tapete de retalhos. Ah! Sobre as panelas, na maioria eram vazias, mas seus moradores não hesitavam de oferecer um café coado, gesto linear na maioria dessas culturas como forma de estreitar os laços de uma vida inteira que na sua maioria, esteve amarrado pelas nuances do esquecimento.

As reflexões que me instigaram a buscar algumas imagens para descrever os caminhos percorridos, as estradas, são lugares que ficaram permanentes na minha memória. A placa me deu uma direção desconhecida num primeiro momento, mas depois de vários anos de trabalho, convivendo com muitas pessoas das cidades descritas nessas placas, pude entender um pouco de suas perspectivas sobre a vida, o mundo, as histórias, suas crenças, seus sonhos e tantas outras particularidades partilhadas.
    

Há nelas acontecimentos que me reportam a Leandra quando lembro das moradias que também tinham pessoas suscetíveis e desconfiadas, a maioria casebres de latão, mas possuíam suas elementares e únicas características, que faziam com que os desafios encontrados se tornassem para mim traços necessários para as intermináveis discussões nos nossos trabalhos, como na passagem de Leandra. Mas eu tinha também a vontade de encontrar com as verdadeiras belezas e possibilidades que me colocavam muitas vezes como intrusa.

Durante um seminário de desenvolvimento do Programa CONSAD (Consórcio Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local) patrocinado pelo MDS (Ministério de Desenvolvimento Social) tinha como participantes 28 Municípios dos Vale do Mucuri, Jequitinhonha e Norte de Minas, pude vivenciar a resposta de um trabalho de mobilização social integrada entre esses Municípios como assistente social do Município de Malacacheta-MG onde trabalhava pela Prefeitura Municipal. Foram meses de trabalho e uma epopeia de descobertas.

Foi sugerido para o seminário uma referência que representasse o potencial de cada Município para exposição nos dois dias do evento. A cada objeto que chegava pensava-se: “Onde está a pobreza dessa gente!!!”. Eram tantos objetos maravilhosos, tratados com tanta dedicação, amor, com uma expressão ímpar que a gente se perdia no espaço e ia além daquela realidade tão “pobre” de tanto reconhecimento.

Muitos outros momentos me fizeram compreender que, independente de industrialização ou não, os eixos de desenvolvimento transpassam pela centralidade de consumo, pois o verdadeiro desenvolvimento de um território é dado a partir da valorização dos seus agentes, das oportunidades oferecidas de acordo com suas necessidades e não de forma vertical de inserção social.

Thompson alerta que “não podemos esquecer que ‘cultura’ é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas”. Nesse emaranhado, são muitos os componentes e elementos que precisamos analisar para que possamos compreender como se dão os embates, os quais, caso contrário, poderiam passar despercebidos, e que são importantes para a compreensão da dinâmica social e do papel de cada sujeito nesse contexto.

Assim como em Leandra, nas cidades dos vales mineiros encontram-se motivos para rir sobre os acontecimentos públicos e privados, não vivendo apenas de recordações, de histórias, mas também de planos para os filhos, de como poderiam transformar a casa, a cidade, sob o cair da tarde de outono, o céu com traços rosas e amarelos, sentados na porta de suas casas, bebendo os doces sonhos para viver aquela realidade.

A luta pela manutenção da dominação apresenta-se em traços “sutis” e, às vezes, imperceptíveis a olho nu. O mesmo podemos dizer da resistência, pois se, em alguns momentos, se dá no enfrentamento declarado e explícito, no cotidiano é também sutil e, na maioria das vezes, imperceptível até mesmo para quem a exerce. Cabe ao historiador “desfazer o feixe” em busca da compreensão do presente: da transformação que se constrói, do sentido dessa construção, para onde ela aponta, buscando definir papéis e, se necessário, o reordenamento de rotas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HALBWACHS, Maurice. “A Memória Coletiva e o Espaço”. In: A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 157-189.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1992, p. 200- 212.

PESAVENTO, Sandra. “História, Memória e Centralidade Urbana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Debates, Puesto en línea el 05 enero 2008, consultado el 23 enero 2014. URL: http://nuevomundo.revues.org/3212; DOI : 0.4000/nuevomundo.3212

SEEMANN, JORN. O Espaço da Memória e a Memória do Espaço: algumas reflexões sobre a visão espacial nas pesquisas sociais e históricas. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral, v. 4/5, p. 43-53, 2002/2003.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ORLANDI, Eni P. Maio de 1968: os silêncios da memória. In ACHARD, Pierre... [et al.]. Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999. CERTEAU, Michael de. “Caminhadas pela Cidade”.

FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes, et. al (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho dágua, 2005, p. 191-207.SANTOS, Myriam SEPÚLVEDA, Myrian. Memória coletiva & Teoria social. São Paulo: Annablume, 2003

SANTOS, MILTON. Espaço e Método, Nobel, São Paulo, 1985, (3ª edição: 1992).

[1] ¹Assistente Social pela UNITAU - Universidade de Taubaté-SP; Especialista em Gestão de Políticas Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-MG. Mestranda do Programa de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela UNIVAP - Universidade do Vale do Paraíba - São José dos Campos – SP. E-mail: flaviacassiano2010@hotmail.com

²Doutora em História Social pela PUCSP, pesquisadora e professora do Mestrado e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Autora de Cidade e Identidade: São José dos Campos, do peito e dos ares. São Paulo, Annablume, 2010. E-mail: vzanetti@univap.br

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