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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XXI Nº 5 SETEMBRO/OUTUBRO DE 2021

12/07/2021

Integra:

Chão Urbano ANO XXI Nº 5 SETEMBRO/OUTUBRO DE 2021



Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
 Bimestral
Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)


Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior

      Julia Paresque e Gabriela Hafner 
 IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Julia Paresque e Gabriela Hafner 
Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.

 

TEXTO

 

O Celeiro da Cidade: a zona rural do Rio de Janeiro e seus impasses

(1890-1956)

Leonardo Soares dos Santos

Professor de História UFF - Universidade Federal Fluminense

Pesquisador do Instituto Histórico-Geográfico de Jacarepaguá

  

Resumo

Na década de 1930, mais precisamente em 1935, a Prefeitura do Distrito Federal irá delimitar uma parte do território da cidade para o estabelecimento de uma zona rural. Ora, mas esta já teria sido delimitada no início da década 1910. Antes disso já se falava em tal zona. Mas, diferentemente de outros anos, a esta zona rural seria atribuída funções eminentemente agrícolas, para fins de abastecimento da capital da República. A afirmação deste caráter agrícola da região assumirá três formas principais: o próprio instrumento do zoneamento, as obras de saneamento (que era voltada para o aproveitamento da sua área agrícola) e o estabelecimento de políticas agrícolas tanto por parte da Prefeitura quanto do Governo Federal. Neste artigo, apresento e analiso a evolução do primeiro aspecto: o debate na cidade em torno da noção da zona rural como “celeiro” do então Distrito Federal.

 

Os tristes subúrbios que começavam a alegrar muita gente...

O Conselheiro[1] Fonseca Telles não economizaria nas tintas na sessão legislativa de 22 de setembro de 1909, na qual o (autointitulado) “representante da zona suburbana” depois de ler artigos publicados nos jornais O Suburbano e Jornal do Brasil sobre a “referida zona”, afirmaria que uma das principais fontes de renda da região era a taxa de enterramentos: “É tristíssimo!” – arrematava o edil suburbano. Por essas e outras – não custa lembrar que aqueles artigos destacavam exatamente o abandono, a insalubridade, o “pouco cuidado, a pobreza da localidade” – tencionava convidar o então prefeito a fazer uma visita à região. Assim, “o chefe do Executivo, vendo com os seus olhos, não deixará de agir quanto antes, senão para embelezar essas paragens, ao menos para torná-las mais transitáveis e salubres” (ACM,[2] 22/05/1909. p. 176-177).

Os contrastes eram tão evidentes dentro de uma mesma cidade que muitos questionavam se os subúrbios poderiam ser efetivamente considerados como uma região pertencente ao Distrito Federal. Aqui temos o testemunho d’O Subúrbio, pouco tempo antes de Telles, felicitando a iniciativa do intendente municipal Luiz Ramos, que propunha a criação de novas linhas de bonde na zona suburbana. A felicitação servia na verdade de mote para um protesto contra as condições que imperavam na região. Para os editores do jornal, era “talvez a falta de viação para todos os pontos seus (...) que a zona suburbana se encontra ainda em tão deplorável atraso!”, com “algumas de suas regiões mais pitorescas, acham-se amesquinhadas por uma tal incúria, e tão enxovalhadas de lamaçais, e tão comidas de mato bravo, que lembram velhas regiões abandonadas, onde pé de homem não parece ter pisado!”. Nos parágrafos seguintes o protesto ganha um novo conteúdo. Culpa-se a prefeitura não apenas pelo “abandono” da zona suburbana, mas por tratar de maneira desigual as zonas da cidade, como se só a zona urbana fizesse parte da capital: “E uma vez que a viação traga movimento e vida, como há de forçosamente trazer, a essas paragens mortas, que não parecem estar a poucos passos da capital, e dela fazerem parte, mas estarem sumidas nos envios sertões de Matto Grosso” (O Subúrbio, 10/08/1907, p. 1).

Não parece haver dúvidas que a noção de abandono pudesse traduzir de maneira justa a realidade de grande parte da região. Entretanto há que se considerar algumas precauções com o uso de tal termo – de tão grande eficácia em termos retóricos, principalmente para os “chefes” políticos da região – para os fins de uma análise comprometida com a perspectiva crítica. E é no debate político sobre o abandono da região que podemos perceber outras nuances e significados possíveis de algo que mais do que uma noção técnica, parece ser um conceito de grande eficácia política. O seu intenso uso em tal arena o atesta.

Em maio de 1912, por exemplo, o conselheiro Honório Pimentel, também autointitulado representante da região, tecia duras críticas ao projeto da Prefeitura em adotar medidas para a concessão de licença e autorização para obras e melhoramentos para as zonas suburbana e rural, com o mesmo grau de exigência que já se verificava na zona urbana. Além disso, este fato poderia implicar na instituição de impostos e taxas. Mas o problema, justificava Pimentel, é que “são bastante conhecidas as dificuldades com que lutam as freguesias rurais para levar por diante o seu desenvolvimento material”. Era de conhecimento público – já há um bom tempo – que “falta-lhes água, luz, esgotos, falta-lhes tudo.” No fundo, Pimentel parecia querer recorrer a idéia (ou realidade) do abandono secular sofrido pela região. Mas a originalidade do seu argumento – embora ele não fosse o único a veiculá-lo – era que tal abandono tinha que ser necessariamente compensado por uma política tributária, fiscal e econômica diferenciada para a região. Para que não restasse dúvidas, o edil complementava: “É evidente, pois, que, se não gozam dos mesmos benefícios das outras, não devem estar sujeitas aos mesmos ônus” (ACM, 25/05/1912, p. 180).

Por outro lado, há que se atentar que nessa mesma época era a região abarcada pelas freguesias rurais a com maior crescimento demográfico em todo o Distrito Federal. Tal crescimento pressionava pelo aumento da demanda por habitações e, conseqüentemente, por materiais de construção. Gerando em alguns casos uma pressão por estabelecimento de serviços públicos como água, luz, esgoto etc. Parece inegável que a região mudava. Em diversos aspectos. Esses comentários de Lima Barreto dão bem a ideia de uma certa cultura urbana que se consolidava em alguns pontos da região a partir de tais mudanças:

Tem confeitarias decentes, botequins freqüentados; tem padarias que fabricam pães, estimados e procurados; tem dois cinemas, um dos quais funciona em casa edificada adrede; tem um circo-teatro, tôsco, mas tem; tem casas de jogo patenteadas e garantidas pela virtude, nunca posta em dúvida, do Estado, e tem boêmios, um tanto de segunda mão; e outras perfeições urbanas, quer honestas, quer desonestas.

As casas de modas, pois as há também, e de algum aparato, possuem nomes chics, ao gosto da Rua do Ouvidor. Há até uma ‘Notre Dame’, penso eu” (BARRETO, 1956).

 

Para que se tenha uma idéia, a população de toda a zona suburbana - incluindo os distritos rurais – crescia bem mais do que a da zona urbana. Comparando-se os números dos censos de 1911 e 1921, verificamos que a população da primeira passa de 213.318 para 365.899. Já a segunda vai de 708.669 para 822.523. Ou seja, isso equivalia a um aumento populacional de 71% e 16%, respectivamente (PDF,[3] 1911, p. 8 e 10).

Tal aumento, entre tantas conseqüências possíveis, implicava logicamente no alargamento de um mercado consumidor em potencial de bens e serviços, algo bastante caro a uma sociedade de economia de mercado recém-saída das entranhas de uma sociedade escravista (LOBO, 1978). Poucos anos depois o conselheiro municipal Fonseca Telles ainda demonstrava extremo entusiasmo com o que vinha acontecendo na região suburbana. Algumas denominações que eram antes motivo de vergonha, já passavam a ser tratadas com irreverência. Numa das sessões legislativas dizia o quão

Agradável lhe é referir que sente satisfação em ver progredir esses lugares, que eram ironicamente conhecidos pelo nome de ‘Mato Grosso’ – hoje trafegados a toda hora por automóveis e toda sorte de veículos. E agradável lhe é também referir esses factos, porque são eles a prova de que certo modo, já se cuida nesta terra, do bem-estar do povo que vive nesses afastados pontos (ACM, 27/07/1914, p. 108).

 

Boa parte desse crescimento populacional parecia, por sua vez, servir como um importante indutor de atração de investimentos para a região. Embora tais investimentos viessem à luz de forma lenta e descontínua, os próprios poderes públicos – que muito contribuíam com tal lentidão – reconheciam já em 1911 “que o desenvolvimento da zona suburbana é um facto iniludível” (ACM, 19/05/1911, p. 161). O crescimento da população implicava também num alargamento do número de eleitores da cidade. Logicamente tal detalhe não fugiu à aguçada percepção de representantes do legislativo carioca. Nesse sentido são ilustrativos o empenho demonstrado por figuras como Arthur Menezes, que numa sessão de 1922 solicitava a iluminação da estrada da Freguesia em Jacarepaguá (ACM, 20/10/1922, p. 566). Mario Julio, dias depois pedia simplesmente “a arborização sistemática das estradas e ruas dos subúrbios da capital” (ACM, 27/12/1922, p. 665). E sinal dos tempos, a própria Mesa do Conselho Municipal pedia ao prefeito providências para que se fizesse “macadamizar o trecho entre Vargem Grande e o do Rio das Piabas e o que vai do Matto Alto à Ilha de Guaratiba e desta ao Figueira” (ACM, 28/08/1922).

Evidencia-se aqui o desenvolvimento de uma espécie de competição entre tais legisladores pela realização de obras de melhoramento na região, com o sentido explícito de serem reconhecidos como autênticos e efetivos “representantes dos subúrbios”. A região, portanto, independente da natureza e finalidade de tais representantes ganhava visibilidade política, pelo simples fato de que em termos políticos o seu papel também crescia (BOURDIEU, 1990). Era praticamente inevitável que no seio de tal disputa um certo discurso regionalista se insinuasse nas falas dos políticos suburbanos. Assim sendo a comparação com a área central da cidade e com bairros como Copacabana e Botafogo – pertencentes ao 1º distrito eleitoral - seriam recorrentes. A própria divisão da cidade em dois distritos, mas tão distintos ente si, seria um combustível privilegiado para alimentar as polêmicas dos tribunos do legislativo carioca. No fim das contas, como tirar a razão de um Adolpho Bergamini, quando afirmava numa das sessões da casa que “o segundo distrito só é equiparado para pagar impostos. No momento das regalias e das concessões justíssimas, é esquecido por completo” (ACM, 29/12/1922, p. 703).

Além dos políticos locais, os “capitalistas” da cidade também mostravam vivo interesse pelas possibilidades que se anunciavam com as mudanças verificadas na zona suburbana. Vários requerimentos seriam enviados ao Conselho Municipal, com o fim de obterem a autorização oficial para a realização de empreendimentos e negócios na região.  Um dos exemplos mais notórios seria o das linhas de bondes. Até o final do século XIX, todas as freguesias rurais já eram cortadas por linhas dessa modalidade de transporte, com viagens constantes para Jacarepaguá, Guaratiba, Campo Grande, Santa Cruz, Barra da Tijuca, Méier, Madureira, Cascadura, Bangu, Realengo. Havia empresas voltadas especificamente para o desenvolvimento desse serviço na região como a já citada Cachambi, a carris de Campo Grande, a Carris de Guaratiba e Linha Circular Suburbana de Tramways (SANTOS, 1965, p. 278).

Enquanto alguns pedidos de concessão visavam articular as localidades rurais com as zonas mais populosas do subúrbio, outros tinham o claro propósito de constituir uma malha urbana no interior ou entre as freguesias rurais. Temos o exemplo de Jose Candido Teixeira, que “tendo em vista a necessidade de uma linha férrea de bitola estreita, ligando a Freguesia de Jacarepaguá a de Guaratiba”, requeria em 1891 “o privilegio por trinta anos para esse fim”.4 Foi o caso também de Luiz Gonçalves Peixoto, que pedia em fins de setembro de 1901 uma concessão para construir uma estrada de carros de “tração elétrica, partindo da Fazenda da Boa Esperança e terminando no lugar denominado Cantagalo na freguesia de Campo Grande” (ACM, 24/09/1901, p. 119). Poucos anos depois era a vez de Francisco Manuel das Chagas Dória receber a concessão de uma linha ligando Campo Grande a Guaratiba. Em julho de 1896 era inaugurado o trecho entre Campo Grande e Monteiro (SANTOS, 1965, p. 224).5 Ainda em 1894, mais precisamente no dia 18 de outubro, era concedia ao engenheiro Domingos Guilherme de Braga Torres uma linha entre Guaratiba e Santa Cruz.

Outro tipo de serviço muito requerido foi o de trens. Ao contrário dos bondes, praticamente todos seriam indeferidos. Uma das razões é que esse serviço era bem mais complexo e, por isso, muito mais custoso do que o de bondes. Imaginemos o que deveriam ser os custos e as implicações para que saísse do papel uma proposta como a do capitão tenente Collatino Marques de Souza, que em meados de 1893 solicitava a concessão de uma estrada de ferro “elevada e elétrica”, bem ao estilo dos Elevators de Nova York, que ligaria “esta capital e o subúrbio de Cascadura” (ACM, 07/09/1893, p. 57). Não menos ambicioso era o projeto de Delphim Ribeiro, que pedia uma concessão por 50 anos para construção de uma linha de “carris de ferro por tração elétrica”, partindo do Rio Grande, em Jacarepaguá, até o alto da Tijuca (ACM, 10/03/1898, p. 29). Tais projetos eram invariavelmente indeferidos: a inviabilidade – tão flagrante em alguns casos – tornava fácil a justificativa do indeferimento.6 Mas não foram poucas as propostas que tiveram seu pedido aceito pelo Conselho Municipal. Caso de Francisco Canella, que pretendia construir uma “estrada de Ferro econômica” ligando a estação de Mangueira ao “povoado” de Sepetiba, passando por Jacarepaguá e Guaratiba (ACM, 01/04/1897, p. 100).

O volume de melhoramentos realizados na região era realmente significativo, mesmo considerando que muitos deles nunca sairiam do papel. Contudo, o que se pode continuar a discutir é sobre o grau e, fundamentalmente, a qualidade desse investimento. Não restam muitas dúvidas de que o material empregado nos serviços públicos utilizados pelas classes pobres das freguesias rurais não era o mesmo daquele usufruído pelos filhos da aristocracia que habitavam Botafogo, Laranjeiras ou Ipanema. Em crônica de 1915 intitulada “História Macabra”, Lima Barreto contava a história de um “defunto”, Florêncio da Costa, que morava em Engenho de Novo e que também fora enterrado em Inhaúma. A estrada seguida pelo coche fúnebre tinha tantos buracos, verdadeiros “abismos” segundo Lima, que ao final da viagem o “defunto ressuscitou” (BARRETO, 2004, p. 157-58).

Num requerimento enviado diretamente ao então Prefeito Souza Aguiar, moradores de Jacarepaguá mostravam-se descontentes com a Companhia de Ferro-Carris de Jacarepaguá:

É possível que esta cia. que acaba de dar tão grande dividendo possa continuar a zombar dos habitantes deste pobre arrabalde, tendo uma linha sem lastro, com dormentes todos podres, com trilhos estragados, com animais imprestáveis, comprados das outras cias. por não servirem para o trabalho. Com falta de bondes.

Pedimos a Vsª para tomar as providências que temos direito.7 

 

Podemos observar que tanto quanto o discurso dos governantes que buscava impor aos subúrbios a imagem de uma região totalmente desolada e largada às traças, a imprensa suburbana e políticos da localidade também recorriam a uma imagem que retratava o subúrbio como algo compacto e homogêneo. A essa imagem, que podia beirar a caricatura, podia-se facilmente objetar com aspectos do contexto social e geográfico da região. No projeto de lei nº 5.413, de agosto de 1921, podemos ter uma ideia do tipo de crescimento, bastante desigual e de certa forma desordenado, que marcaria a evolução urbana da região. O autor desse projeto procurava isentar por “dois anos do pagamento de taxas, emolumentos, plantas, soleiramento e demais exigências as casas” construídas nas “partes não povoadas dos distritos de Inhaúma, Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande, Santa Cruz e Ilhas”. Assim, os poderes públicos permitiam livremente “as construções toscas de madeiras e tapume [...] desde que sejam afastadas pelo menos dezesseis metros dos logradouros” (ACM, 24/08/1921, p. 236). Havia áreas (comumente chamadas de “povoados” desde o século XIX) densamente povoadas que conviviam com áreas de ocupação rarefeita, sem contar regiões praticamente inabitadas, como Recreio dos Bandeirantes, Barra da Tijuca e as restingas de Guaratiba e Santa Cruz. Outro detalhe a se ressaltar é que a própria municipalidade procurava dar conta dessa urbanização descontínua ao estabelecer a divisão administrativa do município. Tal aspecto transparece, entre tantos textos oficiais, no artigo 126 do Código de Posturas de 1928, que proibia a circulação de tropas de animais de carga “pelos logradouros públicos da zona urbana”, só sendo permitida quando cada animal tivesse o “seu condutor especial”. Mas o mesmo artigo ressalvava que “na zona suburbana e nos povoados da rural, as tropas poderão transitar, com as devidas cautelas” (DISTRITO FEDERAL, 1928, p. 68). Portanto, é muito pouco factível que a Prefeitura não tivesse consciência da heterogeneidade espacial do município.

A grande diferença em relação à concentração demográfica, de construções e serviços urbanos não se verificava apenas entre as zonas urbana, suburbana e rural. Os “povoados”, evidenciam, portanto, a existência de aglomerados urbanos no interior de distritos eminentemente agrícolas. Muitos daqueles “povoados” correspondiam às estações suburbanas da linha ferroviária Central do Brasil, como Paciência, Realengo, Bangu e Santa Cruz. Num outro momento (talvez a partir das décadas de 20 e 30) alguns desses “povoados” seriam incrementados pelas linhas de bondes, principalmente nos pontos de ligação entre importantes localidades como Freguesia, Taquara, Ilha de Guaratiba, Pechincha, Praça Seca e Sepetiba. Partindo desse importante elemento, é possível pensar que o caráter descontínuo da urbanização possa ter sido resultado das linhas de transporte que iam se estabelecendo na região desde o último quartel do XIX. Mas não há como deixar de lado que tal perfil descontínuo tenha sido determinado também pela condição geomorfológica do lugar. Nunca é demais notar que ele é cortado por três maciços (Tijuca, Pedra Branca e Mendanha), em torno dos quais foram se formando vales, baixadas e restingas. E acrescente-se um sem número de rios, lagos e brejos que completavam o cenário. Muito da conformação urbana que a região conquistaria no século XX não pode ser compreendida sem que se leve em conta os desafios e limites impostos por tal condição ambiental (como explicar, por exemplo que Campo Grande e Santa Cruz, distantes léguas do centro do Rio tenham se urbanizado muito mais cedo que Ipanema, Leblon e Copacabana?).8

Por tudo isso, mas, principalmente, levando em consideração que muitas áreas da extensa zona suburbana e rural do Rio ainda não tinham sido atingidas pela expansão urbana, não seria exagero afirmar que em algumas áreas a paisagem ainda pudesse lembrar cenários típicos do interior do país. Mesmo Inhaúma, o distrito suburbano de maior expansão demográfica de todo o município, ainda possuía áreas francamente agrícolas em seus limites. Analisando o caso da freguesia de Inhaúma, Joaquim Santos (1987, p. 272) destaca que junto a uma intensa urbanização ocorrida a partir da última década do século XX, várias áreas dessa mesma freguesia permaneciam “divididas em pequenas propriedades voltadas para a plantação de hortaliças, legumes, frutas, cereais, capim para animais de tração, e para a criação de porcos, aves e outros animais”. Em tais áreas ainda era grande o número de estábulos, cocheiras e pastos de aluguel.

Em freguesias mais distantes do centro o cenário era semelhante. Pode-se ler num guia turístico do início do século XX uma descrição reveladora sobre a paisagem de Jacarepaguá: “Da Igreja da Penna se observa um belo panorama: na planície a variedade de plantações da pequena lavoura, em cujo extremo se distingue as lagoas de Jacarepaguá, Marapendy e Camorim” (PESSOA, 1905, p. 153). A região abrigava ainda vários cenários: agrícolas, pouco e muito urbanizados, insalubres, inabitados. Portanto, não podem soar como absurdas as reclamações em relação à insalubridade da região suburbana ou de alguns pontos dela. Numa sessão legislativa de 1917, o ilustre conselheiro municipal Cesário de Mello, figura tradicional da zona rural, parabenizava a Academia Nacional de Medicina por “tratar de combater as lamentáveis condições de salubridade de zonas importantes do Distrito [Federal], como especialmente a vasta região do Rio Guandu”. Era inadmissível, para Mello, que o Rio ainda abrigasse tamanho contraste entre a riqueza das “zonas privilegiadas” e a miséria “das regiões esquecidas”. Mas tal miséria ganhava um novo conteúdo em fins da década de 1910. Ela não dizia respeito apenas à decadência econômica.

Quando diz miséria, refere-se o orador à causada pelo morbus que nessas importantes regiões dizima as suas já escassas populações, e as que por ali atraídas pela riqueza e promessas do solo fértil, com esforço e afronta louváveis, tudo arrostam. Urge, é, indispensável, é imperioso o combate sem tréguas, nessas promissoras zonas do Distrito, ao morbus dizimador e afugentador, como a uncinariose, a leishmaniose, o impaludismo, já não falando, da epizootia que vitima tantos animais” (ACM, 02/07/1917, p. 75).

 

Como salvar o insalubre Sertão?

E quando o assunto era insalubridade, os autores mais prolixos foram, sem dúvida, os sanitaristas da época. É interessante observar que a zona suburbana e rural se constituiriam num importante manancial de dados e casos que seriam explorados por esses pesquisadores nos confins do Brasil com grande intensidade nas décadas de 10 e 20. Um desses sanitaristas mais ilustres, Belisário Penna, ao argumentar sobre a principal razão da “indolência dos nossos homens do campo” alerta que

Nem precisamos penetrar rondonianamente os sem fins[sic] da Pátria para trazermos à tona, exemplos seguros e sem conta.

Basta, por exemplo, que nos refiramos àqueles pobres homens que temos observado e acudido no Posto de Profilaxia de Guaratiba, isto é, na própria zona do Distrito Federal.

Alli, a indolência se apregoa meridianamente, basta um olhar, um simples e vago olhar pelas circunvizinhanças para que o atestado salte plena e inconfundivelmente, indestrutível (Casa Oswaldo Cruz, Coleção Belisário Penna, pasta 24, fl. 1).

 

E havia outros pontos calamitosos segundo o mesmo autor, como em Santa Cruz, cuja epidemia de impaludismo, segundo ele

tão explorada pelos políticos da localidade não é mais grave nem mais extensa do que a que ali explode todos os anos, nas épocas de calor e chuvas abundantes, que aumentam as perenes inundações de toda a baixada das regiões do Distrito Federal desde Santa Cruz a Campo Grande, e no Estado do Rio (COC, CBP, pasta 16, fl. 1).

 

Penna não fazia mais do que ratificar uma ideia já consagrada por Afrânio Peixoto, escritor e professor de higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que era uns dos especialistas “alarmados” com tal situação. Numa conferência realizada em 19 de maio de 1918, o sanitarista tentava convencer que não era só o interior do país que se encontrava entregue às “terríveis endemias rurais”:

Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações [...] Vêem – se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [...] E isto, não nos ‘confins do Brasil’, aqui no DF, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca [...] Porque, não nos iludamos, o ‘nosso sertão’ começa para os lados da Avenida [Central]...” (HOCHMAN, 1998, p. 70).

 

Essa visão era reforçada por José Maria Belo, também sanitarista. Mas Belo ia além. Para ele, as condições de saúde na zona rural eram tão alarmantes, que se fazia necessário reformular a tradicional divisão do país entre “litoral” e “interior”. Além dessas duas regiões, haveria a “periferia do Distrito Federal”. Cada uma dessas regiões era definida não por critérios geopolíticos, mas pela presença das três grandes endemias rurais. Dizia Belo no mesmo ano de 1918: “Às portas da capital a ancilostomose dizima a população da baixada, como mais além, por todo o litoral e margens de rios, o impaludismo, e pelos sertões, a tripanossomíase americana colhem as suas vítimas” (ibidem, p. 71). Dois anos depois o próprio Belisário afirmava novamente, com todas as letras, que “as zonas rurais de Guaratiba, Campo Grande, Santa Cruz, Jacarepaguá, Ilha do Governador em nada diferem das de qualquer município do interior do pais, nem quanto às condições gerais de higiene e ou de ausência de higiene, nem quanto ao atraso e ignorância das gentes” (COC, CBP, fl. E).

Os “diagnósticos” dos sanitaristas também encontravam respaldo em parte da imprensa. Segundo o Gazeta Suburbana, Tijuca, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, Sepetiba, Irajá e Inhaúma, eram “localidades” que “maior progresso” não tinham devido ás “várias moléstias que definham ou matam as suas populações” (Gazeta Suburbana, 12/07/1919, p. 3). Portanto, tinha-se junto a uma visão da zona rural como área de prosperidade e fartura, uma outra extremamente pessimista que a tomava como um sertão, já que entregue ao atraso e a toda sorte de “pestilências”. É sem dúvida muito significativo o fato dos anunciantes de terrenos fazerem questão de afirmar que suas terras ofereciam boas condições de saúde e higiene nos anúncios imobiliários.

- CAMPO GRANDE - belíssimo sítio, tendo morro e vargem, boa agua de cachoeira, tem bananas de diversas qualidades, pomar de laranjas, boas arvores, abacate, 300 fruteiras de conde, algum mamão, tem café, muito aipim, batatas, uma grande horta de couves, feijão de vagens, um grande aboboral, terreno em mato, 800 cabeças de criação, tendo algumas ferramentas da roça, lugar muito sadio [...] (Jornal do Brasil, 13/05/1927, p. 4.).

 

- JACAREPAGUÁ – Casas em pequenas prestações, no melhor clima do Rio, correspondente a aluguel ao alcance de todos. Construção garantida [...] (Jornal do Brasil, 31/03/1935, p. 35).

 

Mas no caso da insalubridade detectada pelos sanitaristas nos confins da zona rural havia uma especificidade a ser considerada. Ela – a zona rural - não era uma aérea apenas ignorada pelos poderes públicos e, portanto, sem ter recebido os devidos melhoramentos urbanos. Tratava-se de uma zona rural que além de muito insalubre, possuía inúmeras terras incultas, que ainda não tinham sido devidamente ocupadas. E na verdade este último aspecto era uma grande causa do primeiro. Ocupar tal área parecia ser o maior dos remédios para uma zona que parecia comprovar a “tese” de Miguel Couto de que o Brasil era um “imenso hospital”. Outro detalhe importante: o saneamento não era visto como algo que tinha fim em si mesmo. É necessário que não percamos de vista que o saneamento proposto por essa época é substancialmente diferente das medidas saneadoras propugnadas na virada do século XIX para o XX (CHALHOUB, 1996; SANTOS, 2006; LAPA, 1996; GITAHY, 1994; LANNA, 1996; ALVES, 2001; PAZIANI, 2004), num momento em que se tratava de sanear quase que exclusivamente as áreas centrais das principais cidades do país. Já o saneamento abraçado por figuras como Belisário Penna e Afrânio Peixoto a partir da década de 1910 seria pensado principalmente para o meio rural. Tal perfil se expressava no próprio nome da campanha – Saneamento Rural.9 E mesmo com todas as limitações vários desses “homens de ciência” passariam a se dedicar sobre questões específicas das zonas interioranas do país. É claro que as doenças seriam o alvo das maiores preocupações. Mas não apenas elas. Questões como a baixa capitalização da agricultura, o pouco estímulo e oferta de assistência técnica e financeira por parte dos governos, a estagnação das técnicas de cultivo, o relativo isolamento, a ação de intermediários, o grande número de terras férteis abandonadas, também mereceriam a atenção desses cientistas.  

Podemos perceber também que em pouco tempo a questão do saneamento “moral e físico” dos sertanejos passa a ser atrelada a uma proposta de resolução da questão agrária, ou como Belisário preferia nomear - a “ressureição agrícola”, que, “com a do saneamento, é a regeneração physico-psychica e moral da nossa gente, a reparação ao injusto, ingrato e desumano abandono a que tem sido deixada; de dignificação do trabalho, de reerguimento econômico, de expansão da riqueza e do progresso” (COC, CBP, 1920, fl.1). Um ano depois, vemos Belisário assumir a Campanha pelo Saneamento Rural como uma verdadeira missão nacional. Mais do que um esforço por sanear “nossa terra”, tratava-se de uma “cruzada patriótica de regeneração física, de levantamento intelectual e moral de nossa gente”. Entretanto, havia mais em jogo. A Campanha era um importante instrumento “de povoamento ‘útil’ do nosso solo, de exploração rendosa das nossas inumeráveis riquezas, de assistência ao povo, da sua educação higiênica, do combate ao alcoolismo, de difusão e aproveitamento do ensino, de salvação nacional” (BANM,10 15/09/1921, p. 193-4).

Se por um lado havia certo consenso sobre a existência de tantas terras abandonadas, e incultas - o que fazia da região um Sertão, por outro, havia da parte dos sanitaristas a ideia de que por exatamente ser um Sertão exigia esforços para sua incorporação à civilização, isto é, à cidade. Mas no entender desse grupo, qual seria a melhor maneira para se proceder a essa incorporação?

No caso do então Distrito Federal um importante argumento é construído pelos sanitaristas e outras figuras da época (como as autoridades políticas da cidade): o aproveitamento das suas terras era entendido como condição sine qua non para o seu saneamento. Para sermos mais precisos: Penna, por exemplo, acreditava que o melhor remédio para o saneamento do Sertão da cidade seria constituí-lo como um celeiro da cidade. Ou seja, não seriam os melhoramentos urbanos ou mesmo a expansão urbana da cidade a melhor alternativa para “salvar” a região das epidemias que a assolavam – algo que era persistentemente pedido, clamado e exigido pela imprensa, por moradores e políticos das áreas mais populosas dos subúrbios – e sim a consolidação de um perfil agrícola da zona rural, com o fim de prover o abastecimento de gêneros alimentícios da cidade do Rio de Janeiro.

Contudo, conforme a intricada rede de interesses próprio do cenário sociopolítico carioca iria demonstrar, a constituição de um celeiro na e para a cidade era uma entre tantas possibilidades viabilizadas pelas obras de saneamento. Como bem observa Penna, os bons frutos do saneamento rural podiam não se dirigir diretamente em prol do abastecimento da população carioca. Ao comentar alguns dos resultados das primeiras obras de saneamento realizado pelo Serviço de Profilaxia do Distrito Federal em Jacarepaguá e Campo Grande – como “abertura de canais e valas para dessecamento dos terrenos, derrubada de matas, destruição de bromeliáceas; retificação, regularização e restabelecimento de rio”, Penna atentava para os germens de um fenômeno que daria a tônica da evolução urbana da região décadas depois:

Sítios abandonados, terrenos incultos, estão sendo aproveitados, e valorizaram-se extraordinariamente.

Os terrenos à margem do Pavuna valorizaram-se de 300 a 600% do que custavam anteriormente ao saneamento (COC, CBP, fl. f).

 

Um Celeiro saudável

A ideia da zona rural como um possível celeiro não era nova, isto é, não havia nascido da cabeça dos sanitaristas. Ela já havia sido claramente formulada pelo prefeito Amaro Cavalcanti em 1917, por ocasião da Mensagem por ele dirigida ao Conselho Municipal, na qual reiterava que “animar, auxiliar, favorecer, sem solução de continuidade, o desenvolvimento da lavoura” deveria “ser reconhecido, na lei, uma das obrigações permanentes do Governo local”. E mesmo que isso, continuava ele, acarretasse em “despesa a ser inscrita no orçamento anual da Municipalidade, não obstante as condições precárias dos cofres municipais exigirem a maior parcimônia a esse respeito”. Porém, a “despesa aludida se torna [...] necessária”. Amaro via no investimento em prol da agricultura da zona rural um excelente meio para minorar a situação precária dos cofres da Prefeitura: “Sem aumentar e revigorar as fontes da riqueza existente no Distrito Federal, este não passará, economicamente falando, de um parasita, vivendo apenas do alheio que outros produzem, muito embora lhe sobrem elementos bastantes de alimentação e sustento próprios” (ACM, 09/07/1917, p. 217).

Os “elementos bastantes” certamente tinham a ver com a significativa produção agrícola ainda encontrada na região e, principalmente, com os terrenos que não eram aproveitados. Embora com algumas reservas, não restavam dúvidas que a zona rural tinha todas as condições para se constituir num verdadeiro celeiro. O recurso a essa noção é o grande pano de fundo desse trecho - sem dúvida o principal - de sua Mensagem:

Não se cogita de empreendimento a ser realizado de uma só vez. Ninguém espera ver, no correr de um ou dois anos somente, todo o território do Distrito Federal transformado em um celeiro de gêneros alimentícios ou num pomar ou jardim, onde se encontrem as frutas e flores de toda espécie. O que se intenta, é encetar, com fé e perseverança, a obra agrícola do Distrito, semeando, onde melhor convenha, a boa sementeira, para que dela brotem plantas escolhidas, capazes dos melhores frutos. Procedamos aos poucos; mas com inteira fé no êxito [...]. Se assim fizermos, em cinco ou seis anos o Distrito Federal terá para sua população alimentação própria, abundante e segura; as suas terras ora incultas, ficarão altamente valorizadas, pela riqueza enorme nelas produzida; e as finanças publicas verão, ao seu turno, progressivamente aumentadas as fontes da renda, as quais agora lhe faltam e hão de faltar, e enquanto for descurada a sorte da riqueza própria do mesmo Distrito (ACM, 10/07/1917. p. 227). 

 

Não era incomum que a noção de celeiro fosse acionada como uma espécie de rememoração do passado agrícola da região e não apenas como um projeto a ser realizado. A memória desse passado servia, portanto, como uma crítica à precariedade vivida pela agricultura local. Entretanto, em que pese o tom nostálgico (e até idealizado), sempre era ressaltado um importante aspecto desses “tempos de fartura”: não se perdia de vista o seu perfil “aristocrático”. No fundo o que se destacava era o passado das grandes fazendas ricas e escravistas. Também sobre isso escreveu Lima Barreto no início de 1920:

Os nossos arrabaldes e subúrbios são uma desolação. As casas de gente abastada têm, quando muito, um jardinzito liliputiano de polegada e meia; e as de gente pobre não têm coisa alguma.

Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que não era assim.

Os ricos gostavam de possuir vastas chácaras, povoadas de laranjeiras, de mangueiras soberbas, de jaqueiras, dessa esquisita fruta-pão que não vejo e não sei há quantos anos não a como assada e untada de manteiga [...].

Os subúrbios e arredores do Rio guardam dessas belas coisas roceiras, destroços como recordações [...]. Não se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitações; não, não é verdade. Há trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela ‘casa’ e que deve ser amor e religião para todos (BARRETO, 2004, p. 129).

 

O que talvez fosse novo era uma associação tão direta entre saneamento e a constituição da zona rural carioca como um celeiro. Em meados de 1918, num projeto que autorizava o “prefeito a proceder ao saneamento das zonas suburbana e rural”, também de autoria do governo Amaro Cavalcanti, ficava definitivamente evidenciado o caráter complementar que passava a revestir a relação entre saneamento das terras e aproveitamento agrícola das mesmas.  Para tanto, o prefeito deveria

a)      desapropriar os terrenos situados em zonas (endêmicas) insalubres, cujos proprietários não realizarem, dentro do prazo que lhes for marcado (12 meses), os serviços de saneamento determinados pelo competente departamento da Prefeitura.

b)      no caso de desapropriação, proceder no território, ao saneamento de modo a contribuir para a profilaxia geral das endemias reinantes. (ACM, 31/07/1918, p. 248)

 

Em 1921, já com argumentos devidamente extraídos do manancial de diagnósticos dos sanitaristas, Cesário de Mello iria elaborar uma análise sui generis sobre a importância do funcionamento das lavouras para o saneamento da região e para o próprio abastecimento da cidade. No dizer do tribuno, a proibição da derrubada de matas e a exigência de licença para tal, estariam afastando os pequenos lavradores dos “trabalhos do campo”, resultando na conformação do seguinte quadro, que ele assim nos descreve:

Se é certo que a cultura sanear, que a maleita é inimiga do trabalho, porque, onde se trabalha, Ela diminuí ou tende a desaparecer, que o principal remédio da malaria está na marmita, punge assistir o trabalhador agrícola sem o amparo da instrução, do credito e do bom transporte para o trabalho atraído pela uberdade dos terrenos na esperança de trabalhar para viver e concorrer para o erário publico, desde logo desaparecido, ceifado pela morte ou reduzido à inutilidade pelo impaludismo e pelas verminoses, somente porque o grande e o pequeno meio estagnado, quer à superfície do solo , quer sobre a vegetação parasitaria que encima o caule e os ramos dos vegetais, onde de preferência, nesse meio límpido, os anofelinos depõem os seus ovos, que não são destruídos pelo batracchio ou pelo anfíbio, têm permanecido ilesos para desenvolvimento da grande transmissão e a água canalizada, à pequena distancia das habitações pobres, não tem sido, ao menos, distribuída para as necessidades de alimentação. E quando, na parte urbana, transformada e saneada, são executados trabalhos que não podem ser condenados, porquanto redundam, de futuro, em contribuição econômica ao Estado, cujas tendencias devem ser de expansão e nunca de estagnação (ACM, 04/08/1921, p. 59).

 

Ao mesmo tempo é necessário que se assinale que a associação da região com a noção de celeiro era também um reconhecimento da produção agrícola que já tinha lugar ali. Vê-la como um celeiro não se devia apenas ao fato de haver um projeto de transformá-la numa zona produtora de gêneros de subsistência no futuro. Com todas as dificuldades e limites, a zona rural produzia o suficiente para ser vista como uma importante zona de abastecimento de gêneros para a cidade. E o que aquele projeto buscava, portanto, era ampliar tal produção. Ora, tratava-se da zona onde existia a “lavoura do Distrito Federal”, fazia questão de sublinhar Fonseca Telles em 1909 (ACM, 22/09/1909, p. 176-7). Num projeto de melhoramentos das zonas urbana e rural, o seu autor procurava justificá-lo afirmando que a última se ressentia “da falta de boas estradas que satisfaçam as atuais exigências de sua já não pequena lavoura” (ACM, 19/05/1911, p. 161). Mais uma vez aqui, a grande extensão da região assim como o caráter heterogêneo e descontínuo de sua ocupação revelam a existência de verdadeiros enclaves agrícolas extremamente produtivos como Jacarepaguá, Campo Grande, Santíssimo e Guaratiba. Esta chamada pelo conselheiro municipal Arthur Menezes de “pérola rural” (ACM, 14/11/1925, p. 868-9). Há que se anotar ainda que tanto nessas três ultimas localidades como em Santa Cruz, os estabelecimentos rurais ocupavam cerca de 90% da sua área total na década de 1920 (RIO DE JANEIRO, 1990, p. 81). Um historiador da época, Delgado de Carvalho apontava que essas antigas freguesias rurais possuíam uma produção agrícola bastante diversificada. Os estabelecimentos ali localizados produziam ao todo 30 mil toneladas de açúcar, 10 mil de mandioca e mais 3 mil de milho, além de feijão, arroz e café. Possuíam ainda significativo rebanho com 23 mil bovinos, 22 mil suínos, 16 mil muares e 7 mil cavalos (CARVALHO, 1926, p. 93). Também digna de nota, já nessa época, era a fruticultura. Delgado de Carvalho notava que em Guaratiba, “o mais rico de todos os distritos agrícolas”, mais precisamente na “encosta Ocidental do mássico (sic) da Pedra Branca”, havia grandes pomares, plantações extensas de bananeiras, de laranjeiras e de “outras frutas”. Ainda segundo o censo de 1920, os distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa cruz concentravam o maior número de cabeças de gado, tinham a maior produção de arroz, feijão, batata inglesa, cana; eram os únicos que produziam algodão e mamona, e detinham a segunda maior produção de café, milho e mandioca. O perfil agrícola dessas localidades se encontrava reafirmado até mesmo nos anúncios de compra, venda e aluguel de terrenos e casas da região. Notem que os atrativos dos terrenos, além da sua dimensão, consistiam em benfeitorias e na existência de algumas plantações e “criações” de animais:

belíssimo sítio, tendo morro e vargem, boa água de cachoeira, tem bananas de diversas qualidades, pomar de laranjas, boas arvores, abacate, 300 fruteiras de conde, algum mamão, tem café, muito aipim, batatas, uma grande horta de couves, feijão de vagens, um grande aboboral, terreno em mato, 800 cabeças de criação, tendo algumas ferramentas da roça, lugar muito sadio [...] (Jornal do Brasil, 13/05/1927, p. 4).

 

Vende-se ou aluga-se por contrato o lindo sítio da Estrada da Barra da Tijuca 24, a 4 minutos do ponto dos bondes da Freguesia, em Jacarepaguá, com grandes pomar (sic) e todas as qualidades de frutas nacionais e estrangeiras, mangueiras para porcos, cocheiras para animais, esplendido para criação de aves e o terreno mede 140 metros de Frente por 150 de fundos, agua encanada, boa casa de campo para morada, luz, etc. (Jornal do Brasil, 07/05/1927, p. 22).

 

Portanto, a grande disponibilidade de terras e a existência de uma produção agrícola prévia (embora, para muitos em franca decadência) explicam em boa medida a escolha da zona rural como o espaço que deveria ser o responsável pelo abastecimento do Distrito Federal. Escolha que era elaborada num momento de grande urgência, pois vivia-se ainda os rescaldos da I Grande Guerra. Esta teria um impacto importantíssimo para o abastecimento do Rio. Os conflitos no palco europeu, ao paralisarem quase que por completo a produção agrícola de lá, acabaram impulsionando um aumento considerável das exportações de alimentos por parte do Brasil. Além da grande demanda os preços dos gêneros estavam elevados. Configurando uma situação na qual os produtores passaram a priorizar o setor exportador, em prejuízo do mercado interno. Ou seja, o conflito acabou por beneficiar “enormemente as classes produtoras e comerciais, [mas] concorreu, também, para o mal-estar das classes consumidoras não bafejadas pela fortuna” (BRASIL, 1926, p. 311).11

Nesse sentido, as medidas tomadas, de um lado, pelo governo municipal e, do outro, pelo federal buscavam não apenas efetivar um projeto, mas na medida em que o implementavam corroboravam um perfil, um papel que historicamente a zona rural vinha ocupando ao longo das décadas. Muito embora tal produção não se desse em função de um plano sistemático, e sim fruto de circuitos tradicionalmente construídos entre os diferentes povoados e áreas de produção entre si e com a zona urbana ou – como muitos diziam – a “cidade”. O que talvez fosse novo é que esse perfil era pensado em função das necessidades da população das áreas mais urbanizadas do Rio. E isso era devidamente ressaltado na maior parte dos atos de oficialização dessas iniciativas.

Entre as medidas mais importantes figuram a regulamentação da Superintendência dos Serviços Municipais da Lavoura do Distrito Federal, o qual se encontrava dividido por quatro postos: Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande e Guaratiba (ACM, 10/06/1918, p. 24).12 No mesmo ano a Prefeitura começava a transformar a Escola Mauá, localizada em Deodoro, numa “escola prática de ensino agrícola”, e que vinha concretizar um projeto apresentado por Cesário de Mello no ano anterior, o qual autorizava o prefeito a “criar, na zona rural do Distrito um Aprendizado Agrícola” em que, “além do ensino primário de letras”, os alunos aprenderiam “praticamente” a “conhecer as operações agrícolas desde o preparo do solo à colheita” (ACM, 06/07/1917, p. 82).

Ainda em 1919, o Conselho Municipal começava a discutir uma lei que permitia o desmatamento de florestas caso os terrenos se voltassem para a cultura de gêneros de primeira necessidade (ACM, 09/08/1920, p. 134).  Em 1926 tal proposta era radicalizada, digamos assim, pelos conselheiros Caldeira de Alvarenga e Mario Barbosa, que procuravam remover qualquer empecilho de conteúdo preservacionista ao disporem logo no Artigo 1º de seu projeto: “Aos lavradores e criadores do Distrito Federal será permitido o corte ou derrubada de matas independentemente de requerimento, licença, ou quaisquer impostos” (ACM, 28/06/1926, p. 739).

Em 1921, por meio do Decreto n.2441, a Prefeitura - tendo Carlos Sampaio à frente - ganhava a permissão de instalar na antiga Fazenda do Saco (Guaratiba) uma Colônia Agrícola e Granja de Criação, anos depois conhecida como Fazenda Modelo. É significativo que o Decreto abrisse a possibilidade de desapropriação de terrenos contíguos para a instalação de núcleos coloniais, cuja produção seria vendida obrigatoriamente nos mercados da cidade (IHGB, Coleção Carlos Sampaio, 26/01/1921, fl. 1). Em janeiro do mesmo ano, o decreto n. 2392 permitia ao prefeito contrair um empréstimo de até 60 mil contos para o gasto com serviços de abastecimento de carne, podendo destinar 10 mil contos deste montante para “serviços e melhoramentos” em distritos como Jacarepaguá, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba (IHGB, CCS, 12/01/1921, fl.9).

Desde Amaro Cavalcanti foram sendo realizados – com grande lentidão, é bem verdade - melhoramento das estradas vicinais que ligavam as localidades dos subúrbios e da zona rural aos eixos (avenida Suburbana e a estrada de ferro Central do Brasil) que conectavam estas com a área central da cidade (REIS, 1977, p. 53). Do lado do governo federal não se pode esquecer as medidas – bem mais tardias – como a criação da Colônia Agrícola de Santa Cruz e da Estação de Pomicultura de Deodoro no início da década de 1930.

Só que os governantes sabiam que mais importante que fomentar a produção já existente, era preciso resgatar as terras da região para a produção que era necessária à cidade. Daí que junto às medidas acima fossem realizadas também as mais diretamente voltadas ao saneamento da região. Enquanto muito se discutia na esfera municipal, o Serviço de Profilaxia, subordinado ao Departamento de Saúde Pública (ligado ao governo federal), implementava a retificação, regularização e limpeza de rios, abertura de valas, aterramento e drenagem de pântanos e capinagem, construção de fossas sanitárias, além da medicação, ou como então se dizia, “o tratamento sistêmico de toda gente” a partir dos postos de saúde, em especial os que sofriam com o impaludismo e ancilostomose (BARROS, 1923, p. 40-1).

Mas as obras mais importantes foram, sem dúvida, as capitaneadas pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS). Para atuar especialmente na região limítrofe do Distrito Federal aquele criaria a Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF) e que atuariam também nas Baixadas de Jacarepaguá a partir da década de 1930. Mais precisamente em 1935, com o desmatamento de toda vegetação no interior dos rios e em suas margens (FERNANDES, p. 197). Dois fatos chamavam a atenção dos técnicos do DSBF: o primeiro era a existência de focos permanentes de impaludismo e o segundo, a convivência nessa mesma região de uma área “próspera e intensamente cultivada” com “enormes áreas inaproveitadas”. Mais uma vez vinha à tona a imagem da zona rural como região de contrastes. Em termos práticos, as obras teriam provocado uma melhora nas condições de salubridade da região; muitos pântanos e brejos foram saneados, tornando-se terras próprias para a agricultura. Para isso, inúmeros canais e valas foram construídos ou dragados. Outra importante consequência foi a valorização fundiária dessas áreas, chegando-se ao ponto de vários canais terem seus traçados modificados em função de loteamentos; o próprio DSBF, promoveria a abertura de valas de drenagem em propriedades particulares de modo a torná-las mais valorizadas.

Por conta desses melhoramentos e a exemplo do que aconteceu na Baixada Fluminense houve grande disseminação da cultura da laranja por quase toda zona rural. As principais regiões atingidas pelo “mar de laranjas” foram Campo Grande, Realengo, Santa Cruz, Guaratiba e, em menor escala, Jacarepaguá (MUSUMECI, 1987, p. 73). O vigor dessa cultura se faria notar até mesmo no mercado de loteamentos. Conforme a conjuntura, alguns “laranjeiros” preferiam investir na produção de laranjas ou na revenda de lotes, “ou em ambas as modalidades, se fosse oportuno”. O terreno que possuísse alguns pés de laranja ou mesmo aquele ainda inculto, mas próximo de uma região de produção citrícola, era certamente um dos mais valorizados, fazendo jus a um slogan da época – “laranja no pé, dinheiro na mão”. Outra importante cultura é a da banana, que se disseminou principalmente pelas vertentes “noruegas” dos distritos de Jacarepaguá (Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena), Campo Grande (Serra do Mendanha) e Guaratiba.

Processo semelhante se verificaria na Baixada de Jacarepaguá, terceira região a sofrer as intervenções do DSBF. As obras ali chegaram em 1937. Um grande surto de malária levou o ministério da Educação e Saúde Pública e sua Inspetoria de Engenharia Sanitária a se ocupar da região. Os estudos desses órgãos constataram que os brejos e manguezais na orla das lagoas de Jacarepaguá eram obstáculos ao curso das águas, constituindo-se num “veículo para o impaludismo”. Uma das soluções propostas – e que foi aprovada - foi a regularização dos rios da bacia contribuinte das lagoas da Tijuca, Camorim e Marapendi. Devido á pressão exercida por Companhias Imobiliárias que atuavam na restinga de Sernambetiba, chegou-se a cogitar no aterramento dessas lagoas. Mesmo tendo sido recusada essa proposta, os interesses de agentes imobiliários não foram de todo frustrados, já que o próprio DSFB apresentava como principais objetivos de seus trabalhos na Baixada de Jacarepaguá a extinção de “focos de anofelinos” e, segundo palavras de um engenheiro do órgão, a “melhora da estética deste recanto de turismo do Distrito Federal”; iniciativas que num futuro próximo poderiam até mesmo facilitar a implantação de loteamentos na região, embora essa não pereça ter sido a intenção dos agentes do DSFB. É como se finalmente, o DSBF estivesse em fins dos anos 30 atendendo aos anseios de sanitaristas da década de 1910, embora já demonstrasse não ter certeza sobre o fim mais adequado a ser dado a essas terras, se para a agricultura ou se para a ocupação urbana. De qualquer forma, em 1939, Hildebrando de Góes, diretor do DSBF, afirmava que inúmeros brejos tinham sido extintos, ocasionando uma sensível diminuição dos focos de malária. Todavia, o almejado “melhoramento estético” ocasionou um aumento da especulação imobiliária em áreas recuperadas pelo DSBF. Já em 1937, o mesmo Hildebrando de Góes, apresentava e lamentava os dados sobre essa consequência: nas terras que margeavam a Lagoa da Tijuca, o metro quadrado tinha conhecido uma valorização de 200%; em Vargem Grande, ela era de 1.500%.

Junto com a “febre da laranja”, essas obras ajudaram a consolidar a imagem da zona rural como uma região de “fronteira aberta”. Mas a importância daquelas obras reside também no fato de ter feito da zona rural uma área de expansão não apenas para a agricultura. Com os melhoramentos do DSFB, a região estava definitivamente aberta para uma outra expansão, a dos negócios imobiliários. Estes, por sua vez, eram cada vez mais regidos por uma nova modalidade – a produção em massa de lotes urbanos.13

É importante frisar que a extraordinária valorização fundiária na região não se deveu apenas às obras do DSBF. Também contribuíram para isso outras obras de infraestrutura do governo federal realizadas ao longo das décadas de 30 e 40, como a abertura das estradas do Joá e Menezes Cortes (atual Grajaú-Jacarepaguá), a eletrificação da Central do Brasil, e a construção da avenida Brasil. Sem esquecer que a extensão das linhas de bonde e, principalmente, de ônibus, exerceriam papel fundamental no processo de incorporação urbana da zona rural (KLEIMAN, 1994). A própria expectativa dos poderes públicos ao efetivar tais melhoramentos era de fomentar a expansão urbana. A constituição de um celeiro já não era a prioridade. Os comentários do engenheiro Raymundo Pereira da Silva sobre a possível instalação de um metrô nos subúrbios e zona rural são emblemáticos. O grande benefício dessa iniciativa para a cidade seria o “transporte de materiais de construção para prédios de residência e de explorações agrícolas, industriais e comerciais, no grande numero de povoações que a Estrada fará surgir ao longo do seu percurso nas praias do litoral oceânico e nas planícies que lhes ficam vizinhas” (SILVA, 1938, p. 1167).

A expansão das vias de comunicação e a melhoria das condições de salubridade passam a encorajar os empreendedores imobiliários a retalhar seus terrenos não mais para arrendar ou vender a pequenos lavradores. Assiste-se nesse momento à consolidação de um mercado efetivo de compra e venda de terras que se destinava à construção de loteamentos. Não parece haver dúvidas de que boa parte desses loteamentos conduziu à implantação de um mercado imobiliário urbano. Os anúncios dos terrenos vão deixando de enfatizar a existência de benfeitorias e de recursos de uso agrícola, dedicando-se a atrair compradores com a menção de “qualidades urbanas” como proximidade em relação a vias de comunicação (estradas, avenidas, linhas de trem, bonde etc) e existência de serviços de luz, água encanada, esgoto e telefone. Mas esses loteamentos não eram exclusivamente urbanos. Alguns loteamentos eram constituídos de lotes rurais, outros buscavam conciliar as duas funções (urbana e rural) através dos lotes para veraneio. Vejamos esses anúncios, de Campo Grande e Senador Câmara respectivamente:

No DF, 4 milhões de m², em zona servida por trem elétrico, bonde a porta; projeto de loteamento para 600 lotes: não aceito intermediário (Jornal do Brasil, 08/07/1945, p. 31). 

 

Casas, terrenos e Sítios – uma estação depois de Bangu, água encanada, luz, telefone, bom comercio, trens de meia e meia hora, 10 minutos da Central; 600 casas a serem construídas em 40 dias, por 55 mil; financiado pelo IAPC;(...) mais de 100 lotes em ruas construídas, a 2 minutos da estação a partir de 6 mil [...] (Jornal do Brasil, “classificados”, 07/07/1946. p. 16).

 

Estamos lidando com um mercado de terras que poderíamos chamar de híbrido, ainda longe de ter uma forma puramente urbana. Contudo, fosse urbano, rural ou de veraneio, os loteamentos pareciam ser um negócio altamente rentável. Os lucros proporcionados por tal tipo de negócio faziam com que muitos se oferecessem para a compra de grandes propriedades na região, como nos mostra esse anúncio de Campo Grande: “Compra-se sitio, até 300.000 m², que tenha nascente, com queda d’água, não distando do Rio mais de 2 horas e em lugar de recursos e saudável. Com ou sem benfeitorias. Dá-se preferência para Campo Grande” (Jornal do Brasil, 15/05/1940, p. 18). 

Outro fator que passa ganhar ênfase nos anúncios de venda de terras a partir de meados da década de 1940 é a possibilidade de serem usados como ativo financeiro. Com a onda inflacionária que passa a tomar conta do país, os rendimentos que se podiam ter com a especulação de terras eram bem maiores do que com a produção agrícola. E mesmo quando se tratava de lotes urbanos, os anunciantes não deixavam de destacá-los. Desejosa de vender lotes em Jacarepaguá, “recanto tradicional dos nobres da Corte, tradicional solar dos barões da Taquara, Visconde de Acesa e Camarista Mor Thedim de Sequeira”, a Companhia de Extensão Territorial, dizia oferecer o “melhor weekend para o carioca”, servido com água, luz, telefone, ônibus e bondes; localizado num lugar que “dentro em breve será ligado à cidade pela estrada Três Rios-Grajaú”. Também podemos notar nos anúncios dessa época a introdução de algumas inovações nas formas de propaganda dos empreendedores imobiliários. É a representação da zona rural como um recanto paradisíaco que dará cor às estratégias de venda dos grandes loteamentos dirigidos para a classe média. Tal objetivo faz com que os classificados de imóveis tenham entre seus termos mais recorrentes, referências do tipo “clima privilegiado”, “clima de sanatório”, “vista deslumbrante”, “recanto aprazível e sossegado”. A própria noção de Sertão passava a ser positivada. O sentido de área distante e afastada do centro era vista agora por um outro ângulo. O saneamento dessas áreas distantes podia fazer delas importantes locais de instalação de casas de veraneio e mesmo balneários. Viver longe do centro, mas com saúde e cercado pelas “belezas e mistérios” da natureza – por que não? Tal imagem já se faria presente na obra O Sertão Carioca, de autoria de Magalhães Correa e publicado em 1936 – sendo que originalmente em forma de crônicas no Correio da Manhã entre 1931 e 1932.

É nesse momento também - e há nisso uma grande contribuição por parte das obras do DSBF – que as referências sobre a zona rural como o lugar da doença cairia em desuso. Na verdade, até pela existência de um clima tão favorável, ele é o lugar por excelência para a instalação de instituições de cura. Principalmente das doenças que causavam temor e cujo melhor tratamento era associado com a reclusão dos enfermos, de preferência que permanecessem bem distantes dos centros mais populosos. Era o caso da “lepra”, tuberculose e das “doenças mentais”. Fruto dessa concepção e da imagem que se tinha da zona rural nessa época (afastada e salubre, ao menos em alguns lugares), seriam instaladas na região várias instituições desse tipo, especialmente em Jacarepaguá. Assim foram criadas em 1924 a Colônia Juliano Moreira Colônia, voltada para a internação de “alienados e psicopatas” (VENANCIO, 1998); o Hospital Curupaiti em 1929, dedicado ao tratamento da Hanseníase (ALMEIDA, 1932); e o Hospital Rafael de Paula Souza em 1951, e que inicialmente tratava apenas de tuberculosos.14

 

Um Sertão sem Celeiro

  O mercado imobiliário que consumia as terras do Sertão Carioca (como passaria a ser conhecida a zona rural e boa parte da zona suburbana) era diferente daquele que ajudou a incorporar à zona urbana os distritos de Méier, Irajá e Inhaúma. Nesses lugares a incorporação foi sendo feita a passos lentos, de lote em lote. Já a nova expansão que começa a se consolidar na década de 40, dirige-se para as enormes áreas agrícolas e agricultáveis da zona rural. Segundo denúncias abundantemente veiculadas pela imprensa e pela Câmara Municipal em 1947, 70% das terras agricultáveis estavam imobilizadas nas mãos de loteadoras (GRILLO, 1947, p.302).

     A “convivência pacífica” entre o urbano e o rural também não era mais encontrada pela geógrafa Hilda Silva quando da sua pesquisa de campo sobre a localidade rural do Mendanha. Era coisa do passado. Ao invés disso, o que se tinha eram pessoas esperando o “melhor momento” para lotear suas terras. Segundo ela, havia além de “chácaras- recreio” com “pomares bem cuidados, criação de galinhas etc”, a existência de “domínios dos pequenos sitiantes passando, ora por terrenos em que o aproveitamento agrícola está se iniciando como o atestam as pequenas lavouras recém-iniciadas, ora por terrenos abandonados cujos proprietários se desinteressam da lavoura e aguardam oportunidade para vendê-los ou retalhá-los” (SILVA, 1959, p. 438). Ocorria no Sertão Carioca a mesma situação verificada por Pedro Geiger na Baixada Fluminense. Vejamos o relato que ele fazia dessa região no início da década de

Os proprietários das terras próximas do Rio percebem que problemas complexos da cidade,como de moradias,poderiam servir para obtenção de lucro pelo loteamento urbano que ampliaria as áreas da cidade(...)O loteamento,paradoxalmente,contribui para a reconstituição de grandes propriedades,pois,preliminarmente,os capitalistas e bancos imobiliários vão comprando extensões de terras visando a futuros parcelamentos,sendo uma das razões da manutenção de latifúndios nas proximidades de uma grande capital [...] (GEIGER & MESQUITA, 1956, p. 60-1). 

 

Depois de algumas décadas, confirmavam-se de maneira incontestável os temores de Belisário Pena e de vários outros, da apropriação das terras rurais da cidade pelo capital imobiliário. Em pensar que em 1917, quando o grande desafio era sanear a zona rural de modo a fazer dela um verdadeiro celeiro, Amaro Cavalcanti já antevisse os problemas que ocorreriam com a valorização dos terrenos da região. Para precavê-los o então prefeito defendia a implantação do “Registro das Terras do Distrito Federal”. O motivo era bem óbvio – já em 1917:

Esta medida se impõe, não só como meio de evitar futuros litígios entre proprietários ou possuidores, mas também como elemento indispensável a diversos fins da administração pública. Desnecessário é dizer que, uma vez valorizadas as terras pela melhor exploração agrícola delas, a cúbica de não poucos aparecerá logo, querendo disputa-las, muitas vezes sem o menor titulo ou direito para assim faze-lo (ACM, 31/07/1917, p. 219).

 

Mais profético impossível...

 

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[1] Assim eram chamados os membros do legislativo carioca (Conselho Municipal) até a reforma do regimento interno na década de 1930, quando este passou a se chamar Câmara Municipal.

[2] Annaes do Conselho Municipal.

[3] Prefeitura do Distrito Federal.  

4 AGCRJ. “Estrada de Jacarepaguá a Guaratiba – 1891”, Códice 57-2-41, fl. 01.

5 Tal concessão seria transferida em 1897 para Sebastião Navarro Betim Paes Leme, que ficava obrigado a expandir a linha até Ilha e Pedra de Guaratiba. O que realmente aconteceu, sendo inaugurada a tração elétrica da linha em 17 de maio de 1917. Ela funcionaria, em precárias condições, até o início da década de 1960.

6 Não eram raros os casos em que os proponentes tinham a sua solicitação indeferida por não apresentarem os documentos necessários (como plantas) ou por não serem claros ao apontar os terrenos que deveriam ser desapropriados.

7 AGCRJ, Companhia Ferro-Carril de Jacarepaguá, Códice 55-1-34, fl. 236.

8 Norberto Ferreras (1995) faz uma interessante comparação entre os tipos geográficos de evolução urbana das cidades de Buenos Aires e Rio de Janeiro. Na primeira, o crescimento teria se realizado de maneira radiocêntrica e no segundo de forma tentacular. O primeiro mais linear e contínuo, o segundo se explicaria pela necessidade de driblar os vários obstáculos naturais presentes na geografia carioca, em especial os seus maciços. Daí que a forma espacial desse crescimento seja marcada pelas linhas curvas. Entretanto, cabe assinalar que o crescimento radiocêntrico não implicou num tipo de urbanização mais justa ou igualitária. Podemos citar alguns casos de cidades com topografias, digamos, menos acidentadas, mas cujo ritmo de crescimento se expressou numa lógica espacial segregacionista: Buenos Aires (FERRERAS, 1995; 2006), Recife (MARINS, 1998), Chicago (McKELVEY, 1963; BEAUREGARD, 2006), Cidade do México (Delgado y Ramírez, 1999) e Campos dos Goytacazes (FARIA, 2005).

9 A Campanha pelo Saneamento Rural ganhou visibilidade, segundo Hochman (1993), com a publicação do relatório da expedição médico-científica realizada por Belisário Penna e Arthur Neiva em 1912 pelo interior do país. Mas foi com a fundação da Liga Pró-Saneamento do Brasil em 1918 que a campanha pelo “saneamento dos sertões” conquistaria maior respaldo institucional juntos às elites. No mesmo ano, o então presidente Wenceslau Braz formalizava os princípios que regeriam a atuação do Serviço de Prophylaxia Rural por meio do decreto 13.001 (BARROS, 1923, p. 54). O tema do saneamento rural também é exaustivamente analisado por Lima (1999 e 2005).

10 Boletim da Academia Nacional de Medicina.

11 Por conta dos problemas que a questão do abastecimento passava a revestir, o governo Wenceslau Braz criava o Comissariado de Alimentação Pública em junho de 1918, que tinha como função exercer rigoroso controle da exportação e até mesmo operar requisições de gêneros, “cujos produtores só os queriam enviar para o estrangeiro e distribuí-los pelos vários comerciantes retalhistas” (LINHARES & SILVA, 1979, 51). Logo depois, em 1920, o governo Epitácio Pessoa a substituiria pela Superintendência de Abastecimento, que teria um caráter bem menos interventor, abolindo, por exemplo, coisas como tabela de preços e controle sobre as exportações, liberalizando as exportações e se voltando mais ao atendimento dos pequenos lavradores com a distribuição - a preço de custo - de instrumentos, adubos e inseticidas (BRASIL, 1926, p. 312). 

12 Passados dois anos, só um posto – o de Guaratiba – permanecia funcionando, o que demonstra o quanto tais medidas tinham que lidar com a densa rede de interesses (pensamos aqui, logicamente, naqueles ligados ao controle de alguns monopólios), cujas ramificações alcançavam certamente as esferas governamentais.

13 Embora seja inegável os avanços conquistados em termos de saneamento das zonas rural e suburbana, não implica que essa questão tenha sido plenamente resolvida. Num texto de 1941, o eminente engenheiro Edison Passos, membro do Clube de Engenharia, sustentava que tais áreas careciam “de numerosas obras, principalmente de viação e saneamento: tratamento de estradas, pavimentação de logradouros, canalização de valas etc (p. 222)”

14 Em fins de 1938, até mesmo uma “Cidade Olímpica” seria projetada para Jacarepaguá. Projeto este de autoria do engenheiro Antonio A. Laviola (1938).

“pomares bem cuidados, criação de galinhas etc”, a existência de “domínios dos pequenos sitiantes passando, ora por terrenos em que o aproveitamento agrícola está se iniciando como o atestam as pequenas lavouras recém-iniciadas, ora por terrenos abandonados cujos proprietários se desinteressam da lavoura e aguardam oportunidade para vendê-los ou retalhá-los” (SILVA, 1959, p. 438). Ocorria no Sertão Carioca a mesma situação verificada por Pedro Geiger na Baixada Fluminense. Vejamos o relato que ele fazia dessa região no início da década de

Os proprietários das terras próximas do Rio percebem que problemas complexos da cidade,como de moradias,poderiam servir para obtenção de lucro pelo loteamento urbano que ampliaria as áreas da cidade(...)O loteamento,paradoxalmente,contribui para a reconstituição de grandes propriedades,pois,preliminarmente,os capitalistas e bancos imobiliários vão comprando extensões de terras visando a futuros parcelamentos,sendo uma das razões da manutenção de latifúndios nas proximidades de uma grande capital [...] (GEIGER & MESQUITA, 1956, p. 60-1). 

 

Depois de algumas décadas, confirmavam-se de maneira incontestável os temores de Belisário Pena e de vários outros, da apropriação das terras rurais da cidade pelo capital imobiliário. Em pensar que em 1917, quando o grande desafio era sanear a zona rural de modo a fazer dela um verdadeiro celeiro, Amaro Cavalcanti já antevisse os problemas que ocorreriam com a valorização dos terrenos da região. Para precavê-los o então prefeito defendia a implantação do “Registro das Terras do Distrito Federal”. O motivo era bem óbvio – já em 1917:

Esta medida se impõe, não só como meio de evitar futuros litígios entre proprietários ou possuidores, mas também como elemento indispensável a diversos fins da administração pública. Desnecessário é dizer que, uma vez valorizadas as terras pela melhor exploração agrícola delas, a cúbica de não poucos aparecerá logo, querendo disputa-las, muitas vezes sem o menor titulo ou direito para assim faze-lo (ACM, 31/07/1917, p. 219).

 

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