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Chão Urbano

Chão Urbano ANO XXI Nº4 JULHO / AGOSTO DE 2021

15/06/2021

Integra:

Editor
Mauro Kleiman
Publicação On-line
 Bimestral
Comitê Editorial
Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann Leivas (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ) Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ) Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ) Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editora Assistente Júnior

      Julia Paresque e Gabriela Hafner 
 IPPUR / UFRJ
Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador
Mauro Kleiman
Equipe
Julia Paresque e Gabriela Hafner 
Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares.

ÍNDICE

Pensando as Políticas Públicas de Infraestruturas de Transporte e Água/Esgoto e redefinições no território da metrópole do Rio de Janeiro

 

 

Pensando as Políticas Públicas de Infraestruturas de Transporte e Água/Esgoto e redefinições no território da metrópole do Rio de Janeiro

                             Mauro Kleiman¹

¹ Prof. Titular da UFRJ

O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil ao Projeto de Pesquisa nº 301979/2017-0

 

Resumo

O trabalho tem por objetivo fazer uma reflexão sobre o conjunto de políticas públicas de infraestrutura de circulação-transportes e as de habitação populares para prover água e esgoto em favelas, tanto no que diz  respeito  às suas funções específicas como quanto ao seu impacto em redefinições do território da metrópole do Rio de Janeiro.

 

O modus operandi do Estado brasileiro caracteriza-se  por uma lógica setorial com cada política territorial sendo tratada em separado, não se percebendo uma coordenação intragovernamental, nem objetivos e ações  que sejam processadas intersetorialmente. Neste sentido, este trabalho, apesar de apontar que políticas públicas de infraestrutura que estão sendo implementadas na metrópole do Rio de Janeiro continuem a seguir a característica dessa lógica se propõe a refletir sobre as possíveis articulações entre as infraestruturas de transportes e de suporte a habitação popular como um conjunto de elementos que traduz uma intenção de redefinição de seu território,  além de se pensar sobre seu  papel e lugar nas suas especificidades. Estas duas políticas foram escolhidas por melhor representarem intenções de alterações no domínio privado popular remetendo os habitantes para o interior das casas por prove-las de água/esgoto, combinado com a intencão de remete-los para o domínio público com novas opções de deslocamentos.

Palavras-chave: “ Território”, “ Infraestrutura”, “Transporte”, “Água/Esgoto”, “Metrópole do Rio de Janeiro”

 

1-Conceituando a questão

No tocante aos transportes se nota mudanças nos seus modais na metrópole . Embora nela estejam presentes todos os modais: o automotivo; o ferroviário; o aquaviário ; o cicloviário, estes meios de deslocamentos apresentam graves problemas de articulação e integração entre eles, além de questões operacionais e de gestão e qualidade, afetando, principalmente, a grande massa da população de menor renda, que deles mais dependem para seus movimentos rotineiros. Apesar de se observar um conjunto de iniciativas de reordenação das formas e meios de deslocamento na metrópole do Rio de Janeiro com implantação do Bus Rapid Transport-BRT;Bus Rapid System-BRS; Veículo Leve sobre Trilhos- VLT; expansão do Metrô; certas melhorias nos Trens e Barcas; Ciclovias... não se percebe medidas plenas de busca de articulação entre os modais, que são entendidos, em geral, como estanques, e de um pensamento e ações visando articula-los com a estrutura do território e um planejamento integrado. Os deslocamentos não são pensados em rede,  constituindo-se corredores-canais de trafegos com baixa integração e fortes constrangimentos, sem compreender e perceber  a característica de um território disperso em atividades diferentes e muito estendido no espaço (Kleiman, 2014; Gravin e Marvin, 2001). Por outro lado, obras de infraestrutura de água e esgoto tem sido realizadas em Favelas, instigam a reflexão  sobre sua efetividade social. Analisamos que as intervenções feitas nas Favelas promovem acesso a água/esgoto apenas a parcela das moradias, mas com problemas de operação/manutenção criando “ilhas” de semi-urbanização- consubstanciando uma desigualdade entre os pobres, num conjunto onde permanece a precariedade do serviço e mesmo a persistência do não-acesso (Kleiman, 2015).

Assim sendo entendemos que as ações de políticas públicas de transporte, e  as de água e esgoto para favelas, mantem um território desequilibrado sem equidade social com importantes constrangimentos para a população de baixa renda a seus delocamentos e mobilidade urbana, e  na articulação com redes-serviços básicos à vida urbana  persistindo a necessidade de inserção na esfera pública para se prover de serviços, com redefinições incompletas configurando um território semi-urbanizado.

Elementos materiais incorporados ao solo as redes de infraestrutura são um dos elementos de interfaces  fundamentais para potenciar acumulação ao possibilitar e realizar a integração entre unidades produtivas e destas com o consumo, moradia, trabalho, permitindo processos de solidarização entre pessoas, serviços, aparatos urbanos. Configura-se, pois, como elemento estruturador dos vários fluxos do território, e como tal da sua própria produção, organização e redes territoriais: trata-se mais que um instrumento da ordem “técnica” ou isolado da formação socio-espacial em que se dá, de um processo de produção do espaço socialmente construído através de sua articulação em redes, imersas e constituinte de relações sociais especificadas por sua distribuição espacial. Tem um papel, portanto mais que “técnico” na estruturação das cidades; é afinal um elemento estruturante para ordenação e desenvolvimento do território, um instrumento sócio-técnico, com uma engenharia com função social, pondo em relação física e simbólica o território, solidarizando-o, podendo ser considerando como equipamento social de solidarização urbana. Existe assim sendo um nexo obrigatório com a função das infraestruturas de prestação de serviços, sem o que seriam apenas um fato da engenharia. Não basta, no entanto ter o suporte físico mas um fluxo, fluidos ou sinais internos de matéria e distribuir estes fluxos pelo território sob a forma de serviços. As redes de infraestrutura tem assim um princípio: é uma maneira de organização que relaciona possibilidades técnicas com o atendimento de um território compondo um conceito de “redes-serviços”, ou seja, o de uma estrutura com dois movimentos de igual valor e simultâneos: redes organizadas e prestação de serviços que são a materialização das relações das redes de maneira interdependente.

Tratados de forma estanque, tanto internamente como intersetorialmente desde sua concepção como projeto até sua implantação, operação, manutenção e gestão pelos diferentes níveis de governo que são os responsáveis setorialmente por cada qual, as políticas públicas de transporte e água e esgoto (tratadas nesta comunicação) são conduzidos ao espaço urbano-metropolitano sem perceber/compreender as relações que estabelecem, suas interações, e seu papel na redefinição do território. Não percebem que estas redes(como as demais) incluem em sua dinâmica interconexões no tempo e no espaço, pois supõem transições entre redes mais simples e aquelas mais complexas; entre aquelas cristalizadas(estáveis) e as necessidades e ações para sua transformação e readequação ao seu papel de atendimento de um território: quando este se transforma carrega a necessidade de mudanças nas redes já estabelecidas ou formação de novas, devendo assim  serem moldáveis, móveis, maleáveis, deformáveis e adaptáveis  a diferentes e novas ou outras situações, estarem sempre tidas como “inacabadas” para esposar as variações do espaço e mudanças que se seguem no tempo. E, também, não supõem que transporte e água/esgoto intereagem, apresentam porosidades entre si pois as fronteiras entre exterior e interior, entre publico e privado se reduzem e se imbricam, por exemplo quando a água parte do domínio público e adentra ao privado na moradia, e as pessoas para sair do privado ao público necessitam de transportes que depois lhe possibilitam voltar ao privado. E interagem , principalmente, na medida que as redes de infraestrutura trabalha com pontos e linhas. Uma pluralidade de pontos-lugar fixo construído não abstrato mas eivado de espessura socio-cultural-econômica, como a moradia para a qual água/esgoto é essencial para ser mais que um “teto” um “lar”, e o rompimento deste ponto inercial tecendo ligações/relações entre os lugares por junções entre os pontos através de linhas por uma pluralidade de ramificações e caminhos base para os transportes que possibilitam as ligações/relações.

No Rio de Janeiro, que está sofrendo grandes transformações em seu território, estes elementos conceituais conduz a reflexões com a implantação do que podemos compreender como uma forma de intervenção pública de infraestrutura envolvendo os deslocamentos em geral, e o provimento de água e coleta de esgotos em favelas que busca redefinir seus papéis e lugares nos movimentos no território e alterações na moradia, mormente nas populares.

Os diferentes modais de transportes coletivos, como meios de deslocamentos e o abastecimento de água e coleta de esgoto por redes na metrópole do Rio de Janeiro apresentam graves problemas de efetividade social e qualidade afetando, principalmente, a grande massa da população de menor renda, que deles dependem por um lado para seus movimentos rotineiros obrigatórios e desejados, e por outro para o provimento regular de água e coleta de esgoto principalmente nas favelas, (caso que examinaremos mais especificamente neste trabalho) .        

2-Políticas públicas de transporte e água/esgoto no Rio de Janeiro      

Tanto em transporte como em água/esgoto inúmeras ações podem ser percebidas no Rio de Janeiro, seja no âmbito intra-urbano, como no metropolitano. As ações em transporte envolvem modificações na rede viária com novas tipologias de vias e padrão do desenho dos deslocamentos no modal automotivo- automóveis, onibus, motos, vans. Trata-se, pois de uma ratificação de política de deslocamentos através do modal automotivo, ainda que sob novas formas(como explicitaremos adiante). Mas, em simultâneo, se observa, um determinado relativo retorno a deslocamentos por política de modal ferroviário, à busca de um território sobre trilhos com melhorias na extensa rede pre–existente de trens suburbanos-metropolitanos; metrô- este de âmbito urbano espraiado até área de expansão de camadas de alta renda a oeste da cidade, e na sua outra ponta até a borda da periferia; e Veículo Leve sobre Trilhos , este servindo ao centro histórico. Em água/esgoto notam-se ações macro-estruturais com nova adutora de água para área de periferia, de moradia predominante da camada popular, no âmbito metropolitano-a Baixada Fluminense, contraposta por ação para área de renda mais alta na Barra da Tijuca, sendo esta conjugada à necessidade de apoio logístico ao centro das atividades das Olimpíadas parte ali localizada, e ações macro-estruturais de coleta e tratamento de esgoto( prometidas e só em parte muito menor executadas), e  micro-localizadas de abastecimento de água/esgoto, sobre as quais, como já citamos, focaremos naquelas que implicaram em ter como alvo as favelas.

2.1-Políticas de transporte

Na política de transportes embora na metrópole estejam presentes todos os modais: o automotivo( automóveis particulares, ônibus, vans, táxis, moto-táxis); o ferroviário( trens, metrô, e esta sendo implantado um VLT); o áquaviario (barcas); o cicloviário(bicicletas), estes meios de deslocamentos apresentam graves problemas de articulação e integração entre eles, até pelo fato primeiro que o modal automotivo e seus meios de deslocamentos são de competência do nível de governo municipal e os ferroviários e aquáviarios  afeitos ao nível estadual, salvo o VLT e ciclovias que atribuiu-se ao município, além de questões operacionais e de gestão e qualidade, afetando, principalmente, a grande massa da população de menor renda, que deles dependem para seus movimentos rotineiros obrigatórios e os desejados. Apesar de se observar um conjunto de iniciativas de reordenação das formas e meios de deslocamento na metrópole do Rio de Janeiro com implantação de BRT;BRS;VLT; expansão do Metrô; certas melhorias nos Trens e Barcas; Ciclovias... não se percebe medidas plenas de busca de articulação entre os níveis de governo aos quais estão afeitos, nem entre os modais, que são entendidos, em geral, como estanques, e muito menos de um pensamento e ações visando articula-los com a estrutura do território e o entendimento deste como uma região metropolitana com vistas a um planejamento integrado, nem ações para o monitoramento e avaliação de desempenho e qualidade. Neste sentido, se coloca um momento  interessante para pensar a problemática no seu contexto mais amplo, contribuindo para reflexões de mudanças no modelo atual, visando os movimentos no território no conjunto integrado das atividades sócio-econômicas com foco principal nos constrangimentos aos deslocamentos da camada de baixa renda.

O modelo de política de transportes e mobilidade das cidades brasileiras tem na metrópole do Rio de Janeiro, um caso exemplar por suas principais características: a) continua a privilegiar os deslocamentos através do modal automotivo, com base em viagens individualizadas em automóveis e motos particulares, e viagens coletivas atomizadas em milhares de veículos ônibus, vans-kombis e moto-taxi, com reconhecida baixa qualidade e capacidade de monitoramento, em detrimento do transporte coletivo de alta densidade(de massa) do modal ferroviário com trens, mêtro e vlt que subsiste sem atender a demanda, com baixa qualidade e monitoramento; b) separa as políticas, projetos e ações por diferentes e não articulados níveis de governo; c) o modelo ainda guarda como premissa a ideia de viagens com um só proposito em determinados horários fixos , pela manhã e tarde, dentro do pensamento pendular, e se centra no problema dos congestionamentos e na previsão de nível futuro destes, sem compreender e perceber que a dispersão das áreas de moradia da população, de empregos, de comércio e serviços, de atividades educacionais e de saúde, e as de lazer e esporte, conduz a uma multiplicidade de deslocamentos em diferentes horários, que se conjuga ao fenômeno na metrópole do Rio da permanência de importância de seu centro histórico como núcleo de fortes atividades, combinado com a nova dispersão para importantes sub-centros, tanto na direção oeste com vasta área de camadas de mais alta renda, como na direção norte da periferia popular, como para a porção leste que combina cidades de alta renda com cidade de grande população com renda baixa, e na direção dos antigos Subúrbios do Rio. e na direção leste para Niterói-São Gonçalo (Kleiman,2008).

Para os deslocamentos por ônibus se pode apontar uma política de ajustes tanto na  configuração da forma de concessão do serviço a empresas privadas como nas maneiras de seus movimentos e velocidades de deslocamentos e relação com demais veículos automotores. algumas medidas e ações importantes para a melhoria deste tipo de transporte. A primeira medida a se assinalar na concessão do serviço de transporte trata-se da licitação das linhas de ônibus em setembro de 2010 pela Prefeitura do Rio de Janeiro que conduziu a uma concentração obrigatória das inúmeras empresas antes existentes(121 empresas) em apenas quatro Consórcios, o que representa uma forma de oligopólio para o sistema, sob alegação que seria mais fácil organiza-lo no trato com menor número de empresários que com centenas. Á esta medida conjugou-se a implantação de Faixas Exclusivas(BRS) para ônibus, controladas por um sistema de radares, primeiro em avenidas da Zona Sul, e o modelo depois se estende também ao Centro,Zona Norte, para possibilitar maior fluidez dos veículos, com redução dos tempos de viagem, e das frotas, e igualmente da localização e redução das paradas. Busca-se impor aos Consórcios reduzir a frota onde existiria superposição de linhas e número de veículos nas zonas Sul e Centro e faze-las ampliar a frota na zona Oeste onde o serviço é muito restrito e onde pelo crescimento demográfico e de atividades a demanda é maior. Nas primeiras experiências observadas de fato verifica-se redução do tempo de viagens, mas pode-se apontar para problemas de congestionamento e aumento do tempo de viagem para os veículos automotores particulares pela redução do número de suas faixas de rolamento. A segunda ação, trata-se da criação de Corredores Expressos de Ônibus(BRT), ainda em fase de implantação-tendo até o momento duas linhas implantadas: a TransOeste e a Transcarioca; e duas em obras- a Transolímpica e a TransBrasil, que tem como base a ideia de faixas segregadas, ou seja separadas da circulação dos demais veículos automotores por barreiras físicas, com cruzamentos em níveis diferenciados, paradas no mesmo nível dos veículos, e compra antecipada do bilhete fora do ônibus, veículos bi-articulados para transporte de maior número de passageiros, maior espaço entre paradas, e articulações nestas paradas com linhas de ônibus circulares e com linhas do modal ferroviário-trens e metrô, mas cuja efetividade não tem se mostrado plena (Kleiman, 2015,2016) .

A partir de 1996 inicia-se, também o transporte coletivo de passageiros através de veículos comerciais leves de pequeno porte (vans e kombis). Inicialmente, esta modalidade de transporte automotivo surge por iniciativas individuais- a cada veículo um dono, e não era atividade nem legalizada nem regulada( os itinerários e paradas eram informais e resolvidos pelos donos das vans e kombis - que em seguida passam a se agrupar em associações ou cooperativas, a maior parte de maneira forçada por grupos paramilitares(milícias) ou ligados aos grupos de tráfico de drogas. Posteriormente, (no primeiro mandato do prefeito Eduardo Paes-2008-2012) ação de legalização do serviço com demarcação de áreas de atuação explicitadas no território, itinerários e paradas fixas, embora os “vencedores” da licitação feita aparentem continuar a serem os mesmos grupos ligados a atividades ilícitas, e parte permaneça clandestina, principalmente na área periférica da metrópole onde o controle do serviço é do nível de governo estadual. A frota deste tipo de veículo apresenta crescimento muito forte (já são 11.000 veículos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sendo que destes a metade são clandestinas, e atingem 40.000 veículos no Estado do Rio. Este tipo de veículo já é responsável pelo deslocamento de número muito expressivo de passageiros (1.600.000 passageiros/dia na metrópole do Rio representando entre 18% e 24% do total . Aponte-se, também o fenômeno dos moto-taxis, também iniciativas no início individuais não legalizadas, e em seguida grupadas por comandos ligados a atividades ilícitas(milícias e tráfico de drogas). Recentemente, em junho de 2016, a Prefeitura do Rio de Janeiro legalizou a atividade devendo os mototaxistas se organizarem em cooperativas ou associações e fazerem serviços de ligação cidade oficial com áreas informais , como as favelas, e terem paradas fixas, embora, igualmente, se reúnam em coletivos por meio de grupos ilícitos. Os mototaxis fazem viagens articulando centros de bairro a áreas populares com estrutura de becos e vielas, onde outro tipo de veículo não entraria.(Kleiman 2014).  Já as vans e kombis prestam-se à função de elo funcional articulador da metrópole difusa e com seu Centro e sub-centros, e para a circulação intra-localidades seja entre os loteamentos populares ou condomínios fechados de alta renda e o comércio e assim mesmo com os BRTs possívelmente persistirão. Isto porque servem tanto para atender ruas internas de bairros no tráfego local,seja para atender inter-localidades do “corredor” de cidades que tem se formado ao longo das rodovias(BR 040;BR 124,BR 116,BR 101,entre outras).Assumem, assim a característica da morfologia difusa do território e dos mercados de trabalho informais e polos de comércio, lazer, e serviços. Servem os veículos leves, com qualidades de serviço diferenciado, às camadas de menor e de maior renda. Para os de maior renda o serviço é feito em trajetos diretos(sem paradas intermediárias) entre os condomínios e os centros dos municípios, ou direto a shoppings, ou para o Centro da metrópole, e para os de baixa renda os trajetos tem inúmeras e informais paradas, e em geral, ligam os bairros pobres ou favelas aos centros das cidades periféricas .

Na metrópole do Rio, a baixa oferta de novos meios de transporte público acarretou no maior congestionamento das redes viárias. Surgiram então, como explicitamos acima, políticas-tentativas da viabilização do aumento da velocidade dos ônibus urbanos existentes, algumas delas implementadas há tempos no Rio de Janeiro , tais como vias seletivas para ônibus nos horários de pico, e outras em fase de implementação na cidade, tal como o BRT – Bus Rapid Transit, ou Trânsito Rápido por Ônibus, que conta com vias segregadas permanentemente e sistema de acesso controlado por estações de embarque e desembarque; expansão do Metrô- ainda que como linha única-; melhorias nos Trens, ainda que quase totalmente insuficientes para atender quantitativa e qualitativamente a demanda; melhorias nas Barcas;implantação do VLT... mas todas estas ações não conseguem envolver de pleno a problemática do que fazer com o veículo automóvel que se mantém como um dos mais importantes meios de deslocamentos.

A política para os automóveis particulares não acompanhou(nem de longe) a expansão geométrica de sua expansão e uso. De 1970 a 2000 a frota de automóveis particulares cresce seis vezes (passa de 350.000 veículos para mais de 2.000.000) com índice de motorização na cidade do Rio de Janeiro de 3,56 habitantes/veículo, sendo em 1960 de 23,4 hab/veículo, sendo  que os mais recentes dados sobre número de automóveis particulares já apontam em 2015 para quase 3 milhões destes veículos na metrópole (Fetranspor, 2003-2016). Para fazer face á este fenômeno optou-se por dois discursos: o primeiro de viés marcado pela ideia “anti-carro”; e o segundo ações contrárias à este discurso com obras viárias, mas procurando “amortece-las” mantendo-se o discurso “anti-carro”. O primeiro viés trabalha com uma política punitiva ao uso do veículo ,com, entre outros: a) estacionamentos nas vias públicas tendo redução de número de vagas e aumento do preço para sua utilização e redução do tempo de uso com maior rotatividade( existe a proposta de licitação de estacionamentos por meio de cobrança e controle informatizado mas isto ainda não foi implantado), a ideia(também não implantada); b) de criação de pedágio para circulação no centro da metrópole(ainda não implantado; c)vias expressas urbanas pedagiadas, isto sim já implantado em duas vias, com valores cobrados na ida e na volta com valor muito elevado (R$ 5,90 cada vez que se passa numa praça de pedágio urbano o que dá ao dia a soma de R$11,80, então se és obrigado a passar diariamente pelo local serão aproximadamente R$267,80 por mês); d) aumento do número de ruas e avenidas com controle de velocidade por radares, (com diferentes limites de velocidades numa mesma via, sem sinalização clara ao motorista sobre a localização e alteração repentina de limites de velocidade  o que tem resultado em enorme volume de multas no que é denominado até de “indústria das multas”); e) ruas exclusivas a pedestres ou prioritárias a estes e a faixas de ciclistas com velocidade regulada ao máximo de 30KM/h; f) aumento impressionante e sem base factível do número de semáforos pelas vias impedindo a fluidez do tráfego com o ideia para “desencorajar” o uso do veículo; g) controle de tráfego por restrições ao uso da rede viária na sua característica de rede “aberta”(ao contrário da rede ferroviária que mantem deslocamentos numa via “fechada” os deslocamentos viários por natureza deveriam ser flexíveis como seu veículo e autônomo na escolha de caminhos) com indução ao tráfego restrito a “corredores” fechados, ou seja , à uma canalização dos fluxos para apenas algumas vias, o que conduz a inevitáveis “congestionamentos”. Ao lado destes elementos de ações restritivas, o que conduz à uma política regressiva( quem possui recursos- as camadas ricas continuaram a usar o carro pois os custos impostos a ela para este uso serão compensados pela menor concorrência com veículos de quem tem constrangimentos de renda para enfrenta-los), se mantém, para efeito de marketing, pois que apoiado por parte da sociedade, a ideia do banimento do veículo automóvel, através de entrevistas do Prefeito, de técnicos, “especialistas”,etc; editoriais na grande mídia a favor do banimento e/ou restrições aos automóveis, sem reconhecer ou conhecer ou perceber seu papel persistente no atual modo de vida, economia, cultura,etc. O segundo viés da política para os automóveis tem sido a realização de obras de grande porte para a criação do que denominei acima de “corredores” de canalização do tráfego: vias expressas ou semi-expressas, contando com viadutos, extensos túneis urbanos; vias expressas subterrâneas, entre outros.

2.2. Políticas de Água/Esgoto nas Favelas

Com relação à políticas públicas de água e esgoto para as favelas o Estado brasileiro praticou o que denominamos uma “não –política” isentando-se da implantação de serviços básicos, sob a alegação de serem áreas de ocupação e construção ilegais, ou, por vezes, no máximo, se fez presente em ações pontuais e parciais( como , por exemplo na “política da bica d’água”), fazendo ações de cunho clientelista em momentos eleitorais. Assim, destaca-se a ausência, o não-provimento destes serviços básicos à moradia, ou seu mal provimento com uma configuração lenta, descontínua, sem manutenção e com problemas de operação que deixou com uma legião de “sem-serviços” e/ou “mal-servidos”.

Tendo em vista este quadro, foram os próprios moradores das favelas que, inicialmente, e por pelo menos sete décadas, configuraram uma “política” para provimento de água e descarte de esgoto, em formas individuais ou coletivas. Esta “política” popular consistiu em táticas e práticas cotidianas. Táticas como ações de desvio de uso de dispositivos oficiais ou não, de ruptura com as normas legais; e práticas cotidianas no espaço, da moradia ao espaço público, como rotina de ações, numa porosidade intermitente entre estes, e no tempo na repetição de gestos e micro-ações nem sempre iguais ou regradas.

As soluções individualizadas no caso da água são tanto aquelas que os moradores fazem e/ou utilizam por si próprios –  como poços, bomba manual, cisternas para guardar água de chuva; ou pegam de rios, fonte pública ou bica fora do domicílio; ou que pegam em algum vizinho; com auxílio de latas, garrafas pet e outras; e no caso do esgoto o lançam para fora das casas em valas abertas(“valas-negras”),ou recolhem os excrementos em sacos plásticos e os atiram pelas janelas. A outra modalidade de solução individualizada, muito comum, trata-se da tática de ligação clandestina fazendo-se uma conexão na canalização oficial mais próxima. É o conhecido “gato”, presente onde quer que encontre-se a população pobre. Cada qual furando para conectar-se à canalização oficial, relacionam-se um a um: por vezes um “gato” ramifica-se em vários canos para cada casa, numa superposição de tubulações de plástico, na maior parte dos casos colocados ao rés do chão, sujeitos a água misturar-se com o esgoto que corre a céu aberto, resíduos de lixo, urina de animais (principalmente ratos). Também existe, em menor proporção, a ligação individual do vaso sanitário( se os tem em casa) à rede de águas pluviais por canos plásticos, no que denomina de “espeto”. Já as táticas e práticas cotidianas coletivas são fruto da ausência do Estado em combinação com formas de conscientização das necessidades que ultrapassam interesses individuais e sua práticas decorrentes. Diante da ausência do Estado, à semelhança da autoconstrução da moradia, as camadas populares terão igualmente o sobre-trabalho de autoconstruírem sua infraestrutura de água e esgoto. Estas ações coletivas configuram redes alternativas sob um formato “arbóreo”: fazem um furo na rede oficial de água mais próxima e dele lançam por ramificações até cada moradia participante do processo. Para o esgoto igualmente existe esta solução e configuração, mas em muito menor escala.

Será somente a partir de 1995 que passa a formular-se e aplicar-se uma política pública que pretende implantar, de forma abrangente e sistemática, redes de água e esgoto nas comunidades populares. A  proposta possibilitaria a existência de serviços urbanos básicos, propiciando a oportunidade de uma equidade social incluindo os habitantes das favelas na cidade oficial/legal.

Esta política busca um desenho de um padrão uniforme de infraestrutura de água e esgoto para as favelas em comum com a cidade oficial/legal, sem tomar em conta a “política” popular configurada em décadas que explicitamos, e seus efeitos numa cultura e modo de vida próprios, e igualmente, não supõe que existam diferenças intra e inter-favelas. Neste sentido contém normas técnicas oficiais, tem porte hiperdimensionado, com obras de grande porte e sofisticação técnica, implicando em altos custos, sendo de natureza macro-estrutural; uma aplicação caso a caso(não se trata de programa geral de saneamento de favelas) mas responde a determinada situação dada emergencialmente, englobando nova organização urbanística e, por vezes, nova tipologia de moradia, e exigem , principalmente, medidas administrativas, normas, regulamentos, regras compartilhadas e taxação dos serviços, tudo antes inexistente nas favelas. Neste sentido, poderíamos pensar nas redes e serviços de água e esgoto como objeto que coloca a necessidade da população de redefinir rotinas, gestos ,ações, condutas que sejam próprias do mundo urbanizado.

As favelas, então, receberiam componentes que possibilitariam de fato a configuração de verdadeiras redes de água e esgoto. Estes elementos estão sendo executados. A primeira questão que se coloca é que dados os atrasos, inconclusões, instalações apenas de engenharia civil, e falta de partes do que seriam as redes, o cumprimento da efetividade social dos serviços ainda não se fez sentir, ou apenas se fez pontual e parcialmente.

Nas áreas onde a prática cotidiana era de pegar água de poço, bombeá-la na rua ou fazer a ligação clandestina, e criou-se a expectativa de ter abastecimento canalizado com água tratada, a decepção é muito intensa de ver obras de engenharia prontas , mas onde, por exemplo, a água não chega às moradias por conta da inexistência de rede de distribuição para as casas. Em áreas onde conseguiu-se concluir as obras, a vida diária mudou: alteram-se as temporalidades, os ritmos, rompem-se as repetições da obrigatória saída da esfera privada para inserção na pública em busca do líquido. Mas como não existe completude plena registram os moradores problemas de freqüência – a água não entra diretamente – insuficiência de volume para as necessidades familiares diárias, e muitos problemas de variação de pressão. Apareceram também indicações de problemas na qualidade biológica da água. Ainda mais se constata um “descasamento” entre as obras de água e esgoto: em algumas favelas foram feitas (ainda que algumas obras apenas parcialmente) obras de esgoto e não as de água, em outros as de água e não as de esgoto; em outros casos faz-se a pavimentação e drenagem das ruas, mas não a rede de esgoto, em outras pavimenta-se as ruas mas não se faz a rede de águas pluviais.

No que concerne mais especificamente ao esgoto se observa, igualmente, obras paradas ou inconclusas. Onde se construiu rede de coleta domiciliar, o sistema aplicado ao invés de ser o separador absoluto, como determinado no projeto, acabou sendo o unitário que junta água de chuva com esgoto. Esta “solução” provoca problemas de entupimentos, vazamentos e retorno de esgoto às casas, pois os canos do esgoto foram dimensionados para o sistema separador. Apesar de terem sido executados mecanismos de inspeção e limpeza o sistema unitário não da conta do volume de água de chuva somado ao de esgoto. Onde a rede coletora atendeu ao especificado no projeto, o cotidiano modificou-se, pois eliminou-se o mal cheiro, a impossibilidade de sair à rua, etc. Mas existe o problema do destino do esgoto estar sendo a rede pluvial mais próxima, por ausência da obra do tronco coletor que levaria o fluxo para uma estação de tratamento que não previa este tipo de fluxo e matéria.

Outro ponto assinalado é que, onde foram feitas as obras, existem problemas de manutenção e operação das redes: vazamentos na rede água, rompimentos e entupimentos na rede de esgoto demoram muito a serem consertados ou não o são. Apesar de implantação de redes oficiais ocorre que, no mais das vezes, os bairros no entorno das favelas têm ausência ou precariedade de funcionamento das redes (notadamente a de esgoto), e por outro lado, o efetivo funcionamento das redes construídas mostram problemas de operação, pois a Cia. Estadual não quer assumir rede feita pela prefeitura, ou se faz a ligação não faz a manutenção, o que impede a efetividade plena dos serviços. Persistem, assim, alguns problemas de pressão, com variação ao longo do dia, não atingindo homogeneamente todas as casas. Ainda verificam-se manobras para levar água e uma parte a outra, e aponta-se, também para abastecimento irregular( por exemplo é comum a água entrar duas vezes por semana ao invés de diariamente, ou faltar água uma vez ao mês por uma semana), assim como a questão de manutenção mostra-se difícil, com demora no tempo para consertos, ou inexistência destes sob alegação das empresas de serem áreas de “risco”, e de entupimentos na rede de esgoto que extravasa em vários pontos. Os moradores, observando sua não resolução , procuram, muitas vezes, resolvê-lo com um retorno `a sua “política” alternativa, vazando a tubulação ou lançando, de novo, o esgoto a céu aberto, apontando também, que nas favelas(principalmente nas de maior porte) só atendem-se parte dos domicílios. A implantação de “dispositivos” de infraestrutura de água e esgoto nas favelas e o quadro encontrado a partir dessa ação permite uma reflexão sobre seus impactos na vida e práticas cotidianas e implicam na redefinição das fronteiras entre público e privado, mas apontam para um “descasamento” entre a cultura e hábitos das comunidades e técnicas implantadas normatizadas e regularizadas.

A política de água e esgoto para baixa renda de fato introduzem um elemento de novidade no processo de urbanização brasileira, procurando, singularmente, dotar de água e esgoto áreas de camadas populares através de uma política pública. Contudo, por mais que essas obras venham para trazer melhorias na urbanização e no acesso a serviços básicos, as mudanças ainda não atendem plenamente aos moradores. Os serviços prestados são intermitentes, além disso, as intervenções para dotar de infraestrutura e habitabilidade as favelas tem implicado em alterações nas práticas cotidianas de seus moradores, pois se alteram sociabilidades, condições e noções de  higiene e privacidade, assim como mudanças de comportamentos em face da nova infraestrutura e organização urbanística/arquitetônica .

3-Redefinições no território e equidade social como futuro desejado para a metrópole do Rio de Janeiro: movimentos e desafios

As políticas de transporte e de água/esgoto para favelas tem implicado em redefinições no território da metrópole do Rio de Janeiro em várias dimensões como as de natureza topológicas e morfológicas; as de configuração e/ou consolidação de sub-centros e novas territorialidades, e aquelas que tem modificado espaços ou domínios públicos e privados e suas múltiplas relações. É sobre este último aspecto que fazemos uma análise, e buscamos apontar quanto a um futuro desejado que tenha como alvo a equidade social no Rio de Janeiro.

Embora o Estado brasileiro utilize como modus operandi a separação entre as políticas territoriais( assim como para todas as demais) entre si, e, incluso, no interior de cada qual, quando se analisa seus propósitos e efeitos, pensamos estas políticas se articulam na busca e ações para modificar espaços públicos e privados com a intenção de uma separação mais nítida entre eles, e nas relações que possam engendrar ou não entre si, ou seja a possibilidade de passagens e/ou porosidades entre um e outro, desde que claro esteja para agentes econômicos o e atores sociais a separação entre público e privado.

Importa, pois, pensar que enquanto a política de transportes busca oferecer as possibilidades para sair da moradia e se movimentar no território, retirando os indivíduos do espaço privado e lhes lançando no público, como necessidade fundamental dado a separação definitiva entre local de moradia e trabalho, a política de água/esgoto para as favelas trabalha para conduzir as pessoas ao interior de suas casas num lugar- as favelas- onde a mistura entre público e privado persiste, ou se mantém difusa, e como tal se configura como diferenciado da cidade oficial/legal, onde esta separação já ocorreu.

As duas políticas- transportes e água/esgoto para favelas- são as que concorrem de maneira mais importante para as mais recentes alterações no território da metrópole do Rio de Janeiro. O Capital desde a virada do século XIX para o XX e no decorrer deste e nas primeiras décadas do século XXI  não cessa de fazer movimentos de reestruturação do território: derruba partes, as reconfigura, depois volta a desmontar as mesmas ou outras partes, para em seguida remonta-las e/ou as reconfigura, como se nunca  considerasse suficiente o novo ordenamento obtido como capaz plenamente de lhe oferecer as bases para novos e mais elevados patamares de acumulação. E são importantes neste processo porque existe, de um lado, a necessidade diária, permanente, de circulação de bens, serviços e força de trabalho numa metrópole de 12 milhões de habitantes, com morfologia que combina um núcleo com formas de urbanização em espraiamento, filamentos, polos, e limites territoriais difusos numa cidade região, com intensidades/ multiplicidades de atividades, e convivência de métodos de produção fordista com o flexível; e, de outro lado, na moradia popular, a necessidade de prove-la de infraestrutura básica à vida e ao modo de vida urbano, para modificar sua função de mero “teto”, abrigo rudimentar, em um lugar onde não se precise no dia-a-dia e várias vezes no mesmo dia sair de casas na busca da água e do descarte do esgoto, para fazer com que os hum milhão e duzentos e cinquenta mil habitantes das favelas( que são as áreas de maior crescimento demográfico e topológico da metrópole, seja no seu núcleo ,seja nas suas periferias e lugares per-urbanos)i sejam incorporados ao mercado capitalista, que o Estado possa ali adentrar para manejar ou remanejar estes lugares diferenciados do restante da cidade, sem o que o Capital  parece não conseguir levar adiante suas ações de reestruturação do território.

A política de transportes tem buscado a reafirmação do modal automotivo como forma privilegiada de deslocamentos mas redefinindo suas diferentes modalidades e as canalizando para “corredores exclusivos” procurando com estas separações aumentar as velocidades e a capacidade de transporte da força de trabalho. Mas esta reafirmação do modal automotivo tem se combinado com um retorno a investimentos e ações no modal ferroviário (trens, metrô e VLT)  a reconhecer que sem o transporte de alta capacidade- de “massa”- as atividades e a intensidade dos movimentos não se dão de forma plena a atender a economia, e a nitidez da separação entre o privado e o público.  Contudo, apesar de determinada melhoria relativa nas possibilidades de deslocamentos em geral, persistem problemas de integração intramodal e inter- modais, tanto em termos tarifários como operacionais, o que tem efeito especialmente sobre as camadas populares que dependem dos transportes coletivos para seus movimentos.

Tendo em vista estas características básicas sobre as políticas de transporte, torna-se necessário analisar determinados pontos e reflexões sobre o quadro encontrado e possíveis caminhos para mudanças no sentido de um futuro desejado com equidade social de mobilidade, que apresentamos sintéticamente, como se segue:a) os indivíduos do grupo social com maior renda conseguem ,ainda que com constrangimentos, alcançar um leque mais amplo de atividades sócio-econômicas e equipamentos coletivos, seja porque tem capacidade de renda para localizar-se  mais próximo a de atividades e equipamentos, seja porque possuem os meios e veículos próprios para tal, seja porque tem como localizar-se nos eixos dos principais modais de transporte, enquanto que a maioria da população deve ser indagada  sobre como ou quais possibilidades possui para resolver suas demandas de movimentos obrigatórios cotidianos ou desejados, considerando que a organização territorial da metrópole do Rio esta baseada na combinação dos fenômenos de dispersão-centralização-novas centralidades em sub-centros, o que implica  para a grande massa de menor renda no aumento de distâncias e tempos de viagens com má qualidade em transportes coletivos com baixo grau de conexidade. Este contexto demonstra a necessidade de pensar de maneira integrada a política de transportes, e esta com a de planejamento do território uso e ocupação do solo, procurando incorporar a grande massa da população à mais amplas e melhores possibilidades de acessibilidade ás atividades das quais precisam ou que querem(desejo) participar, invertendo-se o foco da política de transportes atualmente mais voltada e restrita aos fatores da economia para a dimensão social dos movimentos de deslocamentos  que não são configurados apenas individualmente, mas partem de configuração social mas ampla dependentes de uma teia de redes de trabalho,família,amizades,necessidades educacionais e de saúde,entre outros. A política atual de transportes presume rotina e comportamento de viagens previsíveis com foco em deslocamentos diários pendulares em dois horários fixos, em detrimento da percepção da existência de um nível de variabilidade diária e diferentes padrões de viagens, incluindo, inclusive, atividades não laborais e diversificadas por faixa etárias, o que supõe um padrão de viagens cotidianas múltiplas; b)à atomização da legislação e órgãos de controle e gestão, em geral voltados a atender os interesses das camadas de maior renda, deve-se pensar em superar os obstáculos à configuração real de um organismo de planejamento e gestão metropolitano para os transportes já existente como figura da administração mas não concretizado),  articulado e inserido  num planejamento do território também no mesmo âmbito metropolitano, onde existisse o direito de demanda e participação , nas esferas consultivas e decisórias, dos interesses da maioria da população de menor renda para um novo modelo de transportes de modo a atender e com qualidade as necessidades de viagens obrigatórias de rotinas e as que desejem acessar no sentido da percepção de deslocamentos múltiplos ,atendendo, principalmene a população das regiões mais distantes das suas atividades sócio-ecônomicas e equipamentos coletivos; c)ao invés de pensar em separado os diferentes modais de transporte ou a busca de restrições a seus usos, inseri-los no território como rede que interligue todas as atividades possibilitando igualdade de acesso as diferentes camadas sociais, com prioridade para de baixa renda, através do modelo de intermodalidade com melhor qualidade do sistema de transporte coletivo de massa, tomando em conta a estrutura urbanística dada da metrópole do Rio ;d)sair do foco restrito de ações pontuais para viabilizar os deslocamentos aos pontos de atividades laborais, de comércio e serviços, e de eventos, para pensar na multiplicidade de pontos de destinos obrigatórios e de desejos da metrópole como um todo. No primeiro foco o que vai se buscar resolver são congestionamentos pontuais liberando pistas para a passagem de alguns tipos de deslocamentos e para determinadas áreas e classe social restringindo-os ao todo, e no segundo vai se buscar ampliar e melhorar os desloca enfocar a questão dos transportes para a população de baixa renda através do enfoque da mobilidade como recurso social fundamental ligado a necessidade e direto a cidadania plena. Neste sentido, pensamos existirem heterogeneidades entre os pobres do Rio quanto à sua localização espacial na metrópole e quadro sócio-econômico e identitário, que devem ser levadas em conta para uma busca de um futuro mais equânime, com uma diferença básica entre o que pode denominar pobres urbanos e pobres periféricos/periurbanos. Para os primeiros os meios de transporte até existem mas as necessidades de maiores deslocamentos podem também ser menores quanto mais estiverem localizados residencialmente próximos aos equipamentos coletivos, atividades laborais, escolares, comércio,serviços, lazer. Anote-se, também., diferenças no conjunto de pobres urbanos da cidade do Rio de Janeiro (onde os localizados nos Subúrbios e zona Oeste “pobre”-Realengo,Bangu, Campo Grande, Santa Cruz), que tem constrangimentos para deslocamentos face aos pobres localizados no Centro, Zona Sul e parte Zona Norte). Mas para os pobres periféricos/periurbanos embora existam meios de transporte de massa como trens, e metrô(por transbordo), a maioria dos deslocamentos são feitos de forma atomizada por uma miríade de ônibus e vans(estas agora em parte apenas como alimentadoras dos ônibus), com muito mais importantes dificuldades e constrangimentos para deslocamentos. A existência de transportes de alta capacidade esbarra na sua baixa qualidade material , operacional, de manutenção, e de articulação com a demanda real e problemas gravíssimos de acessibilidade física e de integrações intramodal e intermodais.

A questão principal que se coloca para se resolver seria sobre se as necessidades das camadas populares de se deslocar a grandes distâncias e longos tempos de viagens para locais de atividades no núcleo da metrópole do Rio e seus sub-centros estariam se fazendo através de qual grau de mobilidade custosa ou com dificuldades e constrangimentos, até a um extremo de uma mobilidade penalizada na possibilidade de não poder se deslocar.    

Já na política de água/esgoto para as favelas chama a atenção, inicialmente, as diferenças na morfologia das moradias e sua organização interna, nos tempos de “antes” e “depois” da implantação destes dispositivos de água e esgoto. No “antes” as moradias são auto-construções de morfologia do improviso, em geral muito precárias, compostas de materiais provenientes de “desvio de uso” daquilo que tenha sido refugado na cidade formal. No tempo do “depois” das intervenções urbanísticas e de infraestrutura as moradias que se mantém como improvisadas, mas com acesso a água e esgoto tendem a introduzir o banheiro no interior da casa, instalam máquinas de lavar roupa (estas podendo ser colocadas fora da casa por falta de espaço no seu interior), e tem o tempo e ritmo de vida mais focado no interior da residência, apresentando tendência, também de maior organização aparente dos objetos e arrumação dos cômodos.

Ao seguir nas favelas o padrão de infraestrutura das áreas de maior renda poderia se pensar que o Estado procura uma integração plena destes assentamentos na cidade os formalizando. Esta opção coloca que a escolha evidencia a busca de fazer prevalecer as mesmas normas e regras e seus consequentes comportamentos e condutas existentes na cidade formal nas favelas. Isso significaria, se de fato a implantação obtivesse resultados plenos, que: (a)os moradores teriam que(de maneira rápida) apreender um conjunto de códigos, normas, regras para seu uso ; (b) poderia conduzir a uma valorização do privado, a uma “intimização” da vida cotidiana, rompendo a temporalidade da repetição de ações individualizadas para se prover de água , (ações que tem ritmos próprios e desiguais por seu caráter individual), possibilitando uma dissociação entre público e privado. Por outro lado esta intenção de estender as mesmas normas e regras da cidade formal para as favelas está eivada por uma contradição , pois no que se pode acompanhar, observar com olhar técnico, e se confirma nas entrevistas com moradores, a utilização do mesmo padrão de redes da cidade formal não tem conseguido estabelecer na plenitude, prover redes com todos seus componentes e faze-las funcionar com todas suas propriedades de forma a prestar serviços continuados e suficientes para a vida diária, o que não permite a intenção primeira de valorizar o privado separando-o do público, ao não tomar em conta  a cultura e práticas cotidianas  configuradas na ausência e/ou precariedade de serviços básicos, e querer altera-la de chofre, não obtém êxito pleno e continuado na passagem entre o âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado para o âmbito urbanizado, de modo que os elementos de infraestrutura introduzidos não conseguem ser compreendidos e usados.

A pretensão de uma integração com a cidade formal, inclusão e equidade social envolve completar um percurso que estaria em curso na direção de um âmbito urbanizado, mas que parece carecer de um entendimento que este processo, que penso se tratar, na verdade, de uma semi-urbanização em algumas favelas ou em parte de algumas favelas, e de persistência da não-urbanização em outras. Este processo não é igual a similares na cidade formal, pois nas favelas sua concepção esta eivada de desvios de uso, de invenções e táticas e práticas para provimentos alternativos próprios das respostas possíveis às condições de vida dos moradores. Não seria possível, assim, fazer uma apropriação “automática”  das tipologias de moradia existentes e de parte da estrutura urbanística, como tem sido tentado pelas intervenções públicas, ainda assim parcialmente, sem procurar entender e aceitar,  ou pelo menos dialogar, com as práticas cotidianas e a cultura que se configurou na vida dos moradores expressados na estrutura urbanística e tipologia de moradia das favelas. A introdução  de infraestrutura compondo redes e serviços de água (e esgoto) trata-se de uma cultura que está sendo trazida mas não traduzida para a população de baixa renda, que inclusive sequer recebe instruções de como fazer uso de algo que nunca usaram, ou usaram na invenção do improviso . Os moradores, por vezes, reagem reativando suas redes alternativas, não aceitando o elo com a rede oficial por esta não estar de acordo com suas práticas cotidianas cristalizadas, e não atendê-los de acordo com suas necessidades.

Nota-se, assim sendo, a construção de uma indefinição entre público e privado, a configuração de rimos desiguais e difusos de ações ora para valorizar o privado quando a infraestrutura implantada se efetiva para as atividades da moradia, ou quando funcionam com regularidade, ora para inserir os moradores no público para continuar as se prover de água e esgoto se ainda não contemplados pela intervenção pública, ou quando existem falhas na operação e manutenção das redes instaladas.

No caso da favelas o Estado acredita que ao implantar estes dispositivos os moradores poderiam ser “automaticamente” inseridos num âmbito urbanizado valorizando-se a dimensão sociocultural do domínio privado, e que os indivíduos absorvam o código de normas e procedimentos da cidade oficial, ao reconhecer no seu lugar as mesmas condições de vida (pelo menos no que toca a água e esgoto) que nas outras partes da cidade. Assim o modelo dos programas, idêntico ao do desenho das redes do restante da cidade, “apagaria” a inserção intermitente na esfera pública para se prover de serviços, se de fato modificasse as condições de vida. A dificuldade é que como se trata de programas que tem atingido apenas algumas favelas, e não todas, e muitas vezes até somente parcelas no interior destas, será nas partes onde tem êxito que pode-se observar que cessam os caminhos percorridos para buscar água, levando à uma “ intimização” da vida, com um tempo de vivência mais contínuo mantendo-se aos não atendidos a passagem cotidiana e intermitente para estes entre público e privado.

As indagações que se colocam com as intenções e intervenções urbanizadoras do Estado em favelas envolvem a questão sobre se as condições anteriores foram alteradas de forma a compor um novo tipo de espaço em contraste com o âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado e sobre as mudanças culturais pretendidas. As respostas a estas  indagações se o “antes” se transforma no “novo” é que não se apagou plenamente o “antes” nem se estabeleceu tampouco o”novo” por completo. Em âmbitos não-urbanizados ou semi-urbanizados improvisadamente como encontrados nas favelas, a valorização do espaço público se fez em movimentos difusos e em ritmos repetitivos mas desregrados por conta de ações individuais, embora , em determinados momentos, tenha se constituído o público como lugar da ação quando a prioridade da solidariedade comunitária configurou redes clandestinas para se prover serviços de infraestrutura básica alternativa. Estar num âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizado possibilitou passagens entre o público e o privado, porosidades entre favela e cidade formal. Mas efeitos da incompletude das intervenções do Estado, que poderia ser pensada também como um processo mas que não é colocada claramente assim por este, são a não dissociação plena entre esfera pública e esfera privada própria de âmbitos urbanizados, mas um conjunto difuso de passagens, porosidades e percursos entre uma e outra no interior das favelas, criando espaços intermediários semi-públicos e semi-privados.

A sinalização que se evidencia é que não se completou a valorização do privado, ou seja a moradia ainda não contém, ou não esta articulada  a todos os elementos básicos para a vida cotidiana,   enquanto que a ideia da mobilidade urbana deveria “deslizar” da questão técnica dos níveis e soluções dos congestionamentos para as pessoas na resolução das suas necessidades de atingir seus destinos cotidianos de trabalho, educação saúde, cultura, lazer...independentemente da hierarquia sócio-economica dos lugares, permitindo um trânsito para a equidade social de forma plena e efetiva, ou seja o direito a todos de se deslocarem, e terem condições de moradia em igualdade, como um futuro desejado.(Kleiman, 2004;2015).

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