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Chão Urbano

CHÃO URBANO ANO XIX Nº2 MARÇO/ABRIL DE 2019

18/06/2019

Integra:

 

 CHÃO URBANO ANO XIX nº 2 MARÇO - ABRIL DE 2019 


Editor

Mauro Kleiman

Publicação On-line

Bimestral

Comitê Editorial

Mauro Kleiman (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Márcia Oliveira Kauffmann (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional)

Maria Alice Chaves Nunes Costa (Dra. Em Planejamento Urbano e Regional) – UFF

Viviani de Moraes Freitas Ribeiro (Dra. Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ)

Luciene Pimentel da Silva (Profa. Dra. – UERJ)

Hermes Magalhães Tavares (Prof. Dr. IPPUR UFRJ)

Hugo Pinto (Dr. Em Governação, Conhecimento e Inovação, Universidade de Coimbra – Portugal)

Editores Assistentes Júnior

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

IPPUR / UFRJ

Apoio CNPq

LABORATÓRIO REDES URBANAS LABORATÓRIO DAS REGIÕES METROPOLITANAS

Coordenador

Mauro Kleiman

Equipe

Beatriz Mesquita Angelo e Julia Paresque

Pesquisadores associados

André Luiz Bezerra da Silva, Audrey Seon, Humberto Ferreira da Silva, Márcia Oliveira Kauffmann Leivas, Maria Alice Chaves Nunes Costa, Viviane de Moraes Freitas Ribeiro, Vinícius Fernandes da Silva, Pricila Loretti Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Favela do Morro de São Carlos: um estudo preliminar de suas áreas de especificidades

Beatriz Mesquita Angelo¹

¹ Graduanda de Arquitetura e Urbanismo- FAU-UFRJ

Mauro Kleiman²

² Professor da UFRJ
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Brasil ao Projeto de Pesquisa nº 301979/2017-0

 

1-A Favela do Morro de São Carlos

A favela do Morro de São Carlos, situada no centro da cidade do Rio de Janeiro, no bairro do Estácio, apresenta-se na sua entrada, e em várias partes como um lugar urbanizado.De fato, a entrada do São Carlos se dá por rua oficial com mesmo nome com pavimentação em asfalto, calçadas, iluminação pública, rede área de energia elétrica, canalização de água, lojas comerciais, entre outros elementos que lhe dão uma feição de lugar urbanizado. Mas a favela foi ao longo do tempo subindo cada vez mais o morro criando novas áreas e segue ainda hoje se expandindo, inclusive num processo de conurbação com outras favelas que já existiam na região que vai do Estácio chegando ao Catumbi e, também, ao Rio Comprido, formando o que se denomina de Complexo de Favelas do São Carlos.

Embora sua aparência de lugar urbanizado possa se estender por quase toda as áreas do Complexo, na pesquisa que estamos desenvolvendo, além de anotar problemas de operação e manutenção nas partes que contam com abastecimento de água e relativa coleta de esgoto, observamos e passamos a procurar o exame e áreas mais precárias encobertas pela aparente urbanização.

2- Áreas precárias

No estudo em desenvolvimento apontamoscomo exemplares de áreas mais precárias os casos do Chuveirinho, Mineira-Zinco, Ilha do Rato, e moradias como cortiços na rua São Carlos. Tomamos como fundamento teórico básico para a pesquisa ao conceito de infraestrutura não como objeto meramente técnico, tratado como algo estanque aos demais elementos do território, mas por sua dimensão social de articulação da moradia com a cidade, focando na questão da fruição de serviços básicos pelos moradores. A metodologia do estudo teve como característica ser de corte qualitativo, combinado com visitas exploratórias, entrevistas com os moradores, observação do interior das moradias, trabalhando suas percepções sobre as mudanças em suas moradias, nos arranjos internos e nas rotinas do cotidiano diante da questão do acesso a redes de água e esgoto, contrastando a percepção dos moradores com observação técnica direta de campo, tomada de imagens fotográficas e croquis do interior das moradias.

Como análise preliminar podemos apontar que as áreas examinadas ainda que contem com certo nível de abastecimento de água existem casos em que é preciso acordar de madrugada para sair à busca do líquido, mas a carência mais importante é quanto a ausência de coleta de esgoto sendo despejado em valão a céu aberto com acúmulo de lixo.

Na “Mineira”-“Ilha do Rato” não foram encontradas casas sem banheiro, porém algumas próximas ou imediatamente em

cima do valão que acumula esgoto desde os pontos mais altos da comunidade e que fica cada vez maior, mais exposto e mais sujo. E, além disso um esquema precário de abastecimento de água, próximo ao esgoto e com canos expostos, de forma fácil de ser pisoteado e quebrado.

 

 

 

Foram visitadas duas áreas na comunidade conhecidas pelos moradores como Chuveirinho e Bairro. Passeando pelos becos foi possível perceber a presença de tampas de bueiro, as quais, o morador Rodrigo, que guiou toda a visita, informou que foram implantadas durante a intervenção do Favela Bairro na comunidade. Portanto houve uma melhora

na comunidade como um todo na questão de saneamento básico e de abastecimento de água.

A primeira parada foi no Chuveirinho onde foi possível encontrar encanamento para o esgoto na encosta de uma parte mais alta, porém, de acordo com o relato do Roberto, quando o Favela Bairro foi encerrado, a manutenção necessária não continuou, o que acabou entupindo os canos e, consequentemente, o esgoto passou a escorrer na pedra como é possível ver na imagem abaixo.

 

                                                                     

 

O terreno onde esse esgoto é despejado sofre com o lixo descartado pelos moradores vizinhos e também pelos que moram na parte de cima. Imediatamente atrás de uma casa de um casal de idosos, há outro ponto de despejo de esgoto, mas sem qualquer tipo de tentativa de encanamento. Existe apenas um esquema preparado pelos próprios moradores para que o líquido não passe pelo quintal dos mesmos, funcionando de maneira que não resiste quando há temporais. 

A casa onde é despejado esse esgoto não possui abastecimento de água. Segundo a moradora Neomia de Jesus, que aceitou colaborar com a pesquisa, é preciso acordar de madrugada para buscar água potável nas proximidades. De acordo com os vizinhos de Noemia de Jesus, a única casa que sofria com essa falta de água era a dela. A vala que passa por essa área costumava ser descoberta, porém os próprios moradores que residiam próximo a ela, sentiram-se incomodados e fizeram lajes próximo às suas casas.Durante o trajeto com o objetivo de encontrar onde o esgoto é despejado, próximo ao museu penitenciário, uma captação de águas pluviais foi identificada. Porém foi possível encontrar despejo de esgoto diretamente nessa captação. Como mostra a figura abaixo na Rua Prof. Lavaquiel Biosque encontra-se o fim da vala que percorre as á reas citadas da comunidade.  

 

Em continuação da pesquisa foi feita mais uma visita com a intenção de encontrar outras áreas precárias na comunidade, com esgoto a céu aberto e a falta de abastecimento de água. Além disso, residências precárias, feitas de forma improvisada e sem banheiro.Mais uma vez, um morador do local auxiliou na visita. E, durante o percurso, diversos moradores foram abordados e questionados sobre alguma área ou residência precária, todos disseram desconhecer um local nessas condições, porém sempre citavam um local do complexo conhecido como “Mineira”, afirmando que se por acaso existir situações como esta, lá seria onde encontrar. 

Durante o trajeto, indícios de abandono e trabalho mal feito foram encontrados. Conversando com uma moradora, foi apontado um local próximo no trecho conhecido como “Bica do Zinco”, na zona conhecida pelos moradores como Zinco. Chegando lá, encontramos uma casa, que aparentemente foi demolida e, abaixo da escada de acesso, encontra-se um valão a céu aberto com acúmulo de lixo e cheiro desagradável. 

Seguindo o caminho uma casa de layout diferenciado foi encontrada. Na casa o banheiro e a área de serviço com máquina de lavar roupas estavam localizados do lado de fora, criando um corredor público que serve de passagem para as casas que estão mais a cima. 

 

Para enriquecer a pesquisa realizamos um estudo de caso da residência da Sra. Noêmia que sofre com a questão do abastecimento de água. Na maior parte dos dias não tem água, principalmente durante o verão. Voltando ao local algumas vezes foi possível conversar com a residenteApós a conversa com a Dona Noêmia, foi possível entender melhor o que acontece e como isso afeta negativamente sua rotina e de seu companheiro. 

A água é regularmente fornecida pela CEDAE para os arredores de onde está localizada a casa da Noêmia, porém, como a residência é a última levando em consideração o aclive do morro, a água não possui pressão suficiente para abastecer a caixa d’água no local. 

Devido à situação, Noêmia possui uma rotina diferenciada. Às três horas da manhã, todos os dias, ela acorda para ligar a bomba na tentativa de puxar água, pois é um horário no qual quase não há bombas ligadas e assim as chances de a água chegar na sua casa é maior. E, depois desse esforço, caso não consiga abastecer a caixa, é necessário pedir ajuda ao vizinho na esperança de que lhe ceda um pouco de água. 

Segundo Noêmia, a residência possui cozinha e banheiro com toda a encanação de esgoto, que é despejado numa vala, que percorre todo o morro e recebe o esgoto da grande maioria das residências. 

A moradia foi construída com alvenaria e emboçada, possui 1 pavimento que atende a um casal de idosos. Porém é de difícil acesso. Um degrau alto e uma rampa escorregadia e com inclinação maior do que permitida dão acesso ao quintal, que, por sua vez, dá acesso à porta de entrada da casa. 

Croqui da planta de situação 

  

 

2.1 Moradias precárias na Rua São Carlos 

Uma anotação das mais importantes encontradas na pesquisa foi a revelação da existência de habitações em forma de cortiço no São Carlos. Esse tipo de habitação muito comum no final do século XIX e até os anos 20 do século XX na cidade foram alvo de processos de reforma urbana calcadas no conceito do modelo higienista-embelezador que teve como consequência a desmontagem desse tipo de habitação e sua proibição na cidade – o que levou seus moradores, os pobres, a buscarem soluções para moradia que resultaram na forma de favelas. 

Pois no São Carlos no final da segunda década do séciulo XXI as moradias em cortiço ressurgem. O estudo então parte para examinar esse ressurgimento. Para tal se toma alguns exemplos das unidades mais precárias encontradas, que possuem, aproximadamente, 10m² sem banheiro ou pia, existindo forte problema de aeração nos cômodos, o mau cheiro é permanente e os quartos só tem aberturas para um corredor interno, o qual apenas possui os buracos da escada como ventilação, tornando o local mal iluminado e insalubre, e em algumas unidades, mesmo sem pia, há fogão. A louça é acumulada e transportada até um tanque comum da área de serviço, tendo apenas um banheiro comum a todos e fica fora da unidade. A área de serviço é compartilhada num espaço que sobra entre as unidades. 

Nesses casos, essas moradias, anteriormente, tratavam-se de sobrados típicos encontrados pela cidade do Rio de janeiro. Portanto possuíam uma fachada e plantas usuais, na qual o térreo era ocupado por um comércio e ao lado possuía uma escadaria para chegar no 2º pavimento, onde encontrava-se a residência.  

Depois de anos, as residências foram vendidas para uma pessoa que passou a subdividir cada vez mais a residência por dentro e alugar quartos cada vez menores. Quando não havia mais o que subdividir, as lajes foram ocupadas e mais quartos foram construídos.  

No primeiro caso, o estudo foi feito com alguns exemplos das unidades mais precárias encontradas, que possuem, aproximadamente, 10m² sem banheiro ou pia e, o aluguel cobrado custa em torno de R$ 380,00 a R$400,00. A ventilação não tem uma boa qualidade, o mau cheiro é permanente e os quartos são ventilados para o corredor de acesso, o qual apenas possui os buracos da escada como ventilação, tornando o local mal iluminado e insalubre. Durante o verão, os moradores costumam colocar seus colchões no corredor para conseguirem dormir diante do calor da época, porém acabam obstruindo a passagem de outros moradores que precisam subir e acessar a outra escada. 

 

Ainda sobre esse caso, em algumas unidades, mesmo sem pia, há fogão. A louça é acumulada e transportada até o tanque da área de serviço, para que assim, possa ser lavada. Além disso, como o banheiro é comum e fica fora da unidade, alguns moradores, pelo incômodo da distância, deixam um balde dentro de seus quartos para suas necessidades fisiológicas, despejando-as no banheiro comum depois.Há dois banheiros disponíveis no fundo do pavimento e dois tanques para lavagem de roupas. Há um prisma de ventilação na área de serviço que também serve para ventilar os banheiros.Algumas poucas unidades são maiores e possuem banheiro e bancada com pia, com o custo do aluguel em torno de R$ 500,00. 

 

 


 

No segundo caso as condições são melhores, possuem banheiros individuais e cozinha, com um espaço um pouco maior para cada unidade, mas ainda não o suficiente para comportar famílias de 3 ou mais pessoas como acontece. A área de serviço é compartilhada num espaço que sobra entre as unidades, como mostra a imagem e o croqui abaixo.Todas as unidades, nos dois casos, são alugadas e possuem um mesmo proprietário. No processo de construção das unidades do segundo caso, uma cisterna com capacidade de 40 mil litros foi construída para abastecer os reservatórios superiores que somados totalizam 14 mil litros (4 caixas de 2 mil litros + 6 caixas de mil litros), observados na imagem abaixo, e, assim, fornecer água às unidades, que ficam em torno de 30. Porém, além desses 14 mil litros serem abastecidos pela cisterna, outras residências próprias também são abastecidas, pois ajudaram a custear a construção da cisterna.A falta de água não é comum, apenas quando não é possível abastecer a cisterna por 3 dias em diante, mas a presença da água não ameniza a situação precária dos moradores. 

 

Face ao quadro analisado nos lugares mais precários no São Carlos se pode apontar para a inexistência ou forte constrangimento de fruição de serviços básicos pelos moradores os colocando à margem do mundo urbanizado. No São Carlos podemos dizer da existência e convivência de âmbitos não-urbanizados ou semi-urbanizados, com uma pequena parcela mais próxima de uma urbanização mais plena. Assim, temos face a esse quadroque a valorização da esfera privada ainda não se complete e nos casos analisados não se torna presente estar num âmbito não-urbanizado ou semi-urbanizadoe com pequena parcela próxima de uma urbanização traça no caso do São Carlos uma possibilidade de passagens entre o público e o privado, porosidades entre favela e cidade formal. Mas efeitos das improvisações nas moradias, ausência ou fortes constrangimentos ao acesso a água e esgoto nos casos analisados faz permanecer um conjunto difuso de passagens, porosidades e percursos entre um e outro espaço no interior das favelas, criando espaços intermediários semi-públicos e semi-privados com a sinalização que se evidencia que não se completou a valorização do privado, ou seja a moradia ainda não contém, ou não está articulada a elementos básicos para a vida cotidiana.  

 

Referências Bibliográficas:


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