Revisão sobre o conceito de segregação urbana: o componente espacial da exclusão | Chão Urbano

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Revisão sobre o conceito de segregação urbana: o componente espacial da exclusão

RESUMO

O tema da segregação urbana é recorrente na geografia contemporânea. O artigo consiste na revisão bibliográfica referente ao tema da segregação espacial nos centros urbanos. Conhecer a produção teórica em torno do tema da segregação espacial é fundamental para poder compreender sua (re)produção em determinadas situações. Partindo do pressuposto de que o espaço que é produzido, suas formas, processos, funções e estruturas criadas são construções sociais que revelam elementos das relações sociais de produção, tem-se que a segregação é antes um processo que também representa as relações sociais, a materialização de uma práxis. Embora tenha sido um tema de extensa produção, tanto de reflexão teórica como de pesquisas empíricas, ainda não se esgotou o campo da pesquisa. Muito foi avançado nas diversas formas que a segregação espacial assume nas cidades, mas ainda é necessário um maior investimento em torno das questões que geraram a segregação e suas consequências, bem como também investir na produção de uma alternativa a esse cenário.

PALAVRAS-CHAVE: Exclusão Social; Segregação Espacial; Revisão Bibliográfica

 

A REVISION ABOUT THE CONCEPT OF URBAN SEGREGATION: THE SPATIAL COMPONT OF EXCLUDION

ABSTRACT: The theme of the urban segregation is recurrent in contemporary geography. This article consists in a literature review on the topic of spatial segregation in urban centers. Knowing the theoretical production around the theme of spatial segregation is fundamental in order to understand their (re) production in given situations. Assuming that the space is produced, its forms, processes, functions and structures created are social constructions that reveal elements of the social relations of production, we have that segregation is rather a process that is also social relations, the materialization of a praxis. Although it has been a subject of extensive production, both theoretical and empirical research, not yet exhausted the research field. Much has been advanced in many ways assumes that the spatial segregation in cities, but it still needs more investment around the issues that led to segregation and their consequences, and also invest in the production of an alternative to this scenario. 

KEY-WORDS: Social Exclusion; Spatial Segregation; Literature Review 

 

INTRODUÇÃO

O tema da segregação urbana é recorrente na literatura sobre o tema e é foco de debate na discussão sobre planejamento do território das cidades. A forma como as cidades foram desenvolvidas e a produção do espaço geográfico durante o desenrolar do capitalismo criou formas de ordenação características. Diversos estudiosos, como Bourdieu (1997) e Santos (1978) já afirmavam que a organização do espaço reflete ao mesmo tempo em que condiciona a organização da sociedade. De tal forma, uma sociedade de classes, tal como é organizada no capitalismo, é esperado a organização das cidades de acordo com essa hierarquização social, e de fato, é o que se observa. Assim, a cidade capitalista é desigual, o processo de urbanização tem produzido e aprofundado muita das existentes desigualdades e injustiças da cidade.

Embora esse cenário seja constante na realidade contemporânea, muito esforço teórico tem sido realizado no sentido de se pensar uma cidade inclusiva, justa e igualitária, para todos. Assim, as ciências humanas, frente ao enfrentamento com essa divergência, desenvolveram importantes conceitos para auxiliar na compreensão teórica e na construção de uma sociedade mais justa. Como bem lembrou Lefebvre (2001, p.104) “a reflexão teórica se vê obrigada a redefinir as formas, funções, estruturas e processos da cidade”. No entanto para redefinir essas formas, funções, estruturas e processos da cidade de que Lefebvre fala é necessário, anteriormente, definir o que é encontrado na realidade.

É nesse sentido que desenvolve essa pesquisa, que consiste na revisão bibliográfica referente ao tema da segregação espacial nos centros urbanos. A tarefa é extensa e provavelmente fará sentir a falta de autores sobre o tema, mas foi delimitado um grupo de teóricos com ideias mais ou menos coerentes, dentro de um framework de análise da realidade urbana. Não obstante tomou-se o cuidado de fornecer uma perspectiva histórica e espacial da produção sobre o tema.

A partir disso o presente artigo pretende ser uma contribuição aos estudos urbanos ao realizar a análise da abordagem sobre a segregação espacial evidenciando as principais ideias e contribuições para a construção de uma teoria crítica da realidade.

 A interpretação da realidade deve ser acompanhada de exercício intelectual, de esforço de generalização para abstrair formas e processos, coisas e ações a fim de se tornarem aplicáveis a outros cenários. Nesse sentido conhecer a produção teórica em torno de um tema, no caso a segregação espacial, é fundamental para poder compreender sua (re)produção em determinadas situações

O artigo será organizado em quatro seções incluindo essa introdução. Em seguida dedica-se à realizar um breve levantamento sobre a discussão do espaço, discutindo e dialogando com diversos autores que modo a permitir a construção de um objeto claro que será, em seguida analisado a partir do fenômeno da segregação. Essa próxima parte consiste no levantamento da bibliografia sobre o tema da segregação espacial, analisando os principais textos sobre a temática, discutindo as colocações teóricas dos autores e fornecendo uma análise numa perspectiva crítica da realidade. Por fim, segue as considerações finais do estudo.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESPAÇO:

O espaço deve ser entendido como “uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida” (SANTOS, 1982, p.15). No entanto, a busca de sua precisão conceitual foi fonte de frequente dúvida para os geógrafos. Harvey (1980, p.27) apresenta essa dificuldade ao afirmar que “o espaço não é tão simples como o físico ou o filósofo da ciência poderiam fazer-nos crer”. Milton Santos (1978) lembra que essa dificuldade de definição é decorrente da utilização da noção de espaços por disciplinas tão diferentes como a matemática, física, sociologia, geografia e economia. Assim, considera-se que o espaço representa um elemento fundamental da sociedade, senão a própria sociedade e todas suas contradições consigo. Conforme é destacado por Gregory (1978, p.120-121 apud SOJA, 1993, p.74):

A análise da estrutura espacial não é derivada e secundária à análise da estrutura social, como sugeriria a problemática estruturalista: antes, uma exige a outra. A estrutura espacial não é, por conseguinte, meramente a arena em que os conflitos de classe se expressam, mas é também o campo no qual – e, em parte, através do qual - as relações de classe se constituem, [...]. As estruturas sociais não podem ser teorizadas sem as estruturas espaciais, e vice-versa; as estruturas sociais não podem ser praticadas sem as estruturas espaciais, e vice-versa.

Santos (1982) designa o espaço como sendo um sistema de objetos aliado a um sistema de ações e relações, o que constitui um conjunto indissociável, sendo uma das instâncias da sociedade (juntamente com a econômica e a cultural-ideológica). Sistema esse constituído por elementos: os homens, reesposáveis pelo trabalho sobre o espaço; as firmas, atuando na produção de bens e serviços; as instituições, fornecendo normas, ordens e legitimações; o meio ecológico, entendido com a base física do trabalho humano; e as infraestruturas, o trabalho humano materializado e espacializado.

Esses diversos elementos são intercambiáveis e de grande interatividade entre si, o que garante ao espaço a grande complexidade e necessidade de análise. Segundo o autor, “os diversos elementos do espaço estão em constante relação uns com os outros. [...]. Mas, não são relações apenas bilaterais, uma a uma, mas relações generalizadas.” (SANTOS, 1982, p.26).

Assim, deve-se considerar a existência de diversos subsistemas, correspondente a um determinado espaço, sem desvencilhar do que Santos (1982, p.28) denomina de “Verdadeiro Sistema”, comandado pelo modo de produção dominante e responsável pela produção espacial em diferentes escalas. Conforme o próprio autor, “quando uma variável muda o seu movimento, isso remete imediatamente ao todo, modificando-o, fazendo-o outro, ainda que, sempre e sempre, ele constitua uma totalidade”. Totalidade espacial que expressa, não o resumo dos elementos e suas inter-relações, mas a própria sociedade. Lefebvre explora essa característica explicitada por Milton Santos ao afirmar que:

O espaço não é uma coisa entre outras coisas, bem como não é um produto entre outros produtos: em vez disso, concorda com as coisas que são produzidas e abrange suas inter-relações em sua coexistência e simultaneidade – a sua ordem ou seu caos. É o resultado de uma sequência e de um conjunto de operações, e, portanto, não pode ser reduzida à posição de um mero objeto. (LEFEBVRE, 1991, p.73)

Observa-se a presença dos objetos distribuídos no espaço, sua configuração espacial ou sua forma, conduzida por processos que são resolvidos por funções que estão ligadas à uma determinada estrutura produtiva. Assim no processo de desvelamento do espaço, Santos (1982) sugere o emprego das quatros instâncias espaciais (forma, processo, função e estrutura). Segundo o autor:

[...] se a sociedade (a totalidade social) sofre uma mudança, as formas ou objetos geográficos assumem novas funções; a totalidade da mutação cria uma nova organização espacial. Em qualquer ponto do tempo, o modo de funcionamento da estrutura social atribui determinados valores às formas. (SANTOS, 1982, p.67)

Dessa forma, as quatros instâncias representariam: A forma, o aspecto visível de uma coisa, o padrão espacial de determinados objetos e ações; a função sugere uma atividade desempenhada; a estrutura diz respeito à inter-relação de todas as partes de um todo, seu modo de organização; processo é definido como a ação contínua da totalidade em seu constante devir

O mesmo autor adverte que “[...] forma, função, processo e estrutura devem ser estudados concomitantemente e vistos na maneira como interagem para criar e moldar o espaço através do tempo.” (SANTOS, 1982, p.71) Compreender as quatros instâncias espaciais propostas é uma forma de aproximação da realidade espacial desejada, abrangendo a complexidade de sua produção social.

Conforme Lefebvre (1991) afirma, a essência do espaço não pode ser apenas o local passivo em que desenrolam as relações sociais, mas sim a própria práxis social através da qual se constrói o espaço e a sociedade.

Do espaço não se pode dizer que seja um produto como qualquer outro, um objeto ou uma soma de objetos, uma coisa ou uma coleção de coisas, uma mercadoria ou um conjunto de mercadorias. Não se pode dizer que seja simplesmente um instrumento, o mais importante de todos os instrumentos, o pressuposto de toda produção e de todo o intercâmbio. Estaria essencialmente vinculado com a reprodução das relações de produção. (LEFÉBVRE, 1974, p. 34 apud LIBERATO, 2007, p.57)

 

O espaço configura então o lócus da produção e reprodução das relações sociais de produção, realizadas através do trabalho humano. “O espaço pode ser descrito como trabalho. Ele é reproduzível sendo resultado de repetitivas ações” (LEFEBVRE, 1991, p.75). O espaço é um produto social, que abarca aspectos geográficos, econômicos, sociais, culturais, comerciais, demográficos, políticos, afetivos nas mais diferentes escalas, do local (casa, rua, bairro, cidade) ao global (nacional, continental). Importante destacar que o autor informa que o espaço e as concepções que se tem dele estão diretamente relacionados ao modo de produção e reprodução da vida material prevalecente na sociedade.

Lefebvre (1991) considera que o espaço não é apenas o reflexo das relações sociais de produção, mas que deve ser entendido como a expressão dessas relações e, ao mesmo tempo, considerar sua incidência sobre elas. Chama-se a atenção para o fato de espaço e sociedade serem duas estruturas que agem uma sobre a outra, sendo, portanto, condicionantes e condicionadas em uma relação dialética, conforme é destacado por Soja (1993, p.98) ao afirma que existe um “[...] caráter essencialmente dialético das relações sociais e espaciais.

As estruturas sociais e espaciais estão dialeticamente entrelaçadas na vida social, e não apenas mapeadas uma na outra como projeções categóricas. E dessa ligação vital provém a pedra angular teórica da interpretação materialista da espacialidade, o reconhecimento de que a vida social é materialmente constituída em sua geografia histórica, de que as estruturas e as relações espaciais são as manifestações concretas das estruturas e relações sociais que evoluem no tempo, seja qual for o modo de produção. [...] A constituição da sociedade é espacial e temporal: a existência social se concretiza na geografia e na história (SOJA, 1993, p.100)

Nesse sentido, Soja (1993) esclarece a relação da sociedade com o espaço e o tempo, que ele propõe pensar dialeticamente, o espaço, o tempo e o ser social: as três instâncias em que se reproduz a sociedade.

O espaço é socialmente produzido a partir do trabalho humano (LEFÈBVRE, 2010) e das relações sociais que são “[...] dialeticamente inter-reativas, interdependentes; que as relações sociais de produção são formadoras do espaço e contingentes ao espaço.” (SOJA, 1993, p.103). Sobre isso Soja (1993, p.101-102) afirma:

O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes das transformações de determinadas condições inerentes ao estar vivo, exatamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo.

Assim, o espaço e a sua organização são produções sociais criadas a partir das relações entre homens em sua vida cotidiana. Logo, o espaço que é produzido, suas formas, processos, funções e estruturas criadas são construções sociais que revelam elementos das relações sociais de produção. Dessa maneira, concorda-se com Santos (1979) quando afirma que o espaço é uma instância social, ou seja, sociedade sem espaço é abstração, sendo a recíproca verdadeira, pois para compreendê-la deve-se considerar o espaço e vice-versa.

 

A SEGREGAÇÃO ESPACIAL

Conforme apresentado anteriormente, o espaço é elemento central na dinâmica das relações socioeconômicas culturais e políticas e, por isso é capaz de demonstrar como acontece a organização da sociedade. Nessa perspectiva tem-se que a exclusão como todos os demais processos que ocorrem na sociedade será expressa no espaço, como nas grandes e megas cidades a desigualdade socioeconômica é mais visível. He, Wu e Webster (2010) afirmam que o componente espacial da exclusão possui importante influência na cidade moderna e na sua lógica de produção e reprodução, uma vez que a “segregação é inerentemente geográfica” (BROWN; CHUNG, 2005, p.125).

Como é destacado por Soja (2008, p.1), uma “sociedade socialmente segregada é controlada através do espaço”. Dessa forma o espaço cumpre função primordial em manter a sociedade segregada. Santos (1973), ao descrever como se promove a organização do espaço sob os alicerces capitalista revela que esse modo de produção gerou uma forma bem específica de espaço, que é indissociável para a produção das atuais relações socioeconômica e política. Segundo Santos (1973, p.74) “espaço vem sendo utilizado, em quase toda parte, como veículo do capital e instrumento da desigualdade.”

Bauman (1999) afirma que o “confinamento espacial”, de forma a separar determinados grupos à uma distância material e se constitui em um mecanismo que visa impedir a visibilidade de indivíduos e/ou grupos que, por variados motivos, não se enquadram no padrão social prevalecente. Vide o isolamento dos escravos nas senzalas, dos leprosos e pessoas com distúrbios mentais, das etnias e culturas diferentes das predominantes, dos ricos e dos pobres. Ou seja, “o isolamento e a função essencial da separação espacial é reduzir, diminuir e comprimir a visão do outro” (p.114)

Negri (2005, p.67) afirma que o processo diferenciado de ocupação espacial e a consequente segregação de segmentos da população são combinados com “históricos mecanismos de separação social”. Concordando com Saraví (2004) que considera essa associação de diversos atributos de cunho social, cultural, histórico, econômico e, sobretudo, espacial, como importantes mecanismos que produzem e mantém a exclusão social, capazes de dotar essas velhas desigualdades de novos conteúdos e processos.

Glasmeir e Farrigan (2007, p.224) esclarecem esse processo ao afirmar que: “a segregação espacial é sistematicamente ligada a outras dimensões como o isolamento econômico e a separação residencial, incluindo o status socioeconômico e a forma urbana.

O processo de segregação das cidades capitalistas evidenciam a “[...] gentrificação, construção de condomínios fechados e a ‘Disneyficação’ do espaço contra a falta de moradia bárbara, a falta de habitação a preços acessíveis e degradantes ambientes urbanos para a massa da população” (HARVEY, 2012, p.35). Essa realidade se deve a estrutura social do capitalismo e que acaba se refletindo na (re)produção espacial da cidade.

A cidade regida pelo sistema capitalista organizou a sociedade dentro de um modelo burguês de concepção sócioespacial. He, Wu e Webster (2010) colocam que a organização social das cidades “pós-fordistas” contribuição para uma complexização não apenas à nível dos indivíduos, mas também espacial, diferenciando determinados locais e selecionando os moradores.

[...] a cidade se revelou a portadora da nova civilização (urbana industrial e moderna), mas também aí foi encarada como tendo um lado indesejável, a da pobreza. Foi à presença dos famélicos, “sujos, grosseiros” e que “deveriam” ser afastado dos olhares burgueses. Surgiu aí a primeira forma de segregação explícita. Mais tarde haveria intenção mais direcionada, inclusive dos aparelhos públicos de planejamento de “zonear”, catalogar e ordenar o espaço urbano por determinadas funções [...], destinar espaços específicos à habitação popular. (VÉRAS, 2003, p.84)

Conforme exposto no estudo de Bauman (1999), ao analisar o trabalho de Sennet (1996), sobre as cidades norte-americanas, é destacado uma regularidade. Um padrão de vivência e ocupação do espaço urbano baseado no ressentimento com os estranhos e na necessidade de isolá-los e bani-los. Segundo Bauman (1999, p.56) “as cidades contemporâneas são construídas a partir do evitamento e separação, [...]”, sendo a forma de preservar as elites capitalistas do encontro indesejado com as classes menos favorecidas.

A segregação sócioespacial que produz um confinamento forçado de determinada população é, conforme descrito por Bauman (1999, p.114) uma forma “quase visceral e instintiva de reagir a toda diferença”, particularmente aquelas que não se deseja acomodar na rede habitual de relações sociais. Nesse sentido, a separação residencial nas grandes e megas cidades contemporâneas revelam esse desejo, por parte do grupo dominante, de evitar o contato, a convivência e até mesmo visual, com os segmentos excluídos. Assim, a situação da exclusão social desenha-se no horizonte das cidades capitalistas. A exclusão social é produtora e produto da segregação espacial, as duas são imbricadas uma à produção da outra. Segundo Musset (2010) as desigualdades espaciais são tão mais intensas quanto mais forem as inequidades sociais à que estão atreladas. A segregação sócioespacial, indicativa do grau de exclusão social existente, é percebida com maior clareza quando se analisa a localização e o tamanho das áreas segregadas.

A nova organização espacial da cidade empurrou os trabalhadores de baixo rendimento financeiro para locais cada vez mais distantes das áreas centrais. Considerando a colocação de Bauman (1999, p.95) em que afirma: “Os de baixo [excluídos] volta e meia são expulsos do lugar de que gostariam de ficar. Se eles não se retiram, o lugar muitas vezes é puxado como um tapete sob seus pés.” Dessa maneira, percebe-se que, no processo de decisão locacional, os excluídos não detém participação. São expulsos por mecanismos do chamado livre mercado e pelo poder público a fim de atender os interesses da classe dominante ou de frações dessa.

É importante destacar que a segregação sócioespacial decorre da divisão do espaço urbano entre integrados (incluídos) e não-integrados (excluídos), sendo percebida com maior clareza nas grandes cidades porque essas, além de concentrarem o maior número de indivíduos, explicitam mais acentuadamente a forma desigual com que o espaço é apropriado pelas classes sociais. Nesse sentido, a segregação sócioespacial existente nas cidades é indicativa de que os locais, dentro da arquitetura urbana, são previamente estabelecidos e desigualmente apropriados (LIBERATO, 2007, pp.16-17)

Nesse sentido fica evidenciado que a população excluída é levada a ocupar as periferias da cidade, expulsas de locais que sofreram um processo de aumento do valor do solo urbano. Esse processo é tratado por Corrêa (2010, p.177) como uma “explosão da periferia popular”. Ele afirma que acontece um movimento de relocação de populações pobres, que antes ocupavam áreas centrais, menos periféricas para novas periferias, mais distante do núcleo central. Como é lembrado por Glasmeir e Farrigan (2007, p.226), a dinâmica do mercado nas cidades “tende a agregar os pobres, nas áreas metropolitanas menos desejáveis, onde pouco investimento é realizado”.

[...] a exclusão social se mostra bem mais evidente nas regiões metropolitanas das grandes cidades brasileiras, principalmente nos espaços rejeitados pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que não despertam o interesse dos agentes imobiliários. São nessas áreas desvalorizadas que a população trabalhadora pobre vai se instalar, nas encostas dos morros, terrenos sujeitos à enchente e áreas alagadas, regiões poluídas e outros tipos de riscos.  (COUTO, 2011, p.4)

Conforme é colocado por Paviani (2002) as periferias são a materialização, a forma espacial de mecanismos de exclusão e segregação sociais, tais como as habitações precárias e insuficientes, a ausência de infraestrutura etc. Essas áreas abrigam inúmeros loteamentos irregulares, ou até mesmo clandestinos, que não obedecem as exigências legais em vigor. São áreas com baixo ou nenhum investimento em infraestruturas, reduzido número de equipamentos privados e públicos, revelando a ausência do poder público. As residências são, em sua maioria, construídas em regime de mutirão, sem orientação ou assessoria técnica.[2] Essas características revelam o declínio da qualidade de vida das populações que são levadas a ocupar essas áreas enquanto que “a maioria dos investimentos públicos é voltada para os bairros de classe de mais alta renda” (NEGRI, 2008, p.136)

Kowarick (2000) ressalta o papel que o Estado cumpre no processo de exclusão. Segundo o autor, o Estado é o principal investidor que injeta no tecido urbano melhorias que são fatores de intensa valorização diferencial da terra. Assim, cumpre função primordial no processo da especulação imobiliária, em que produz zonas da cidade valorizadas para a moradia da classe de maior poder aquisitivo. Conforme é expresso pelo autor, existe uma relação inversamente proporcional entre o preço da terra e o ônus social. Em áreas de alto custo econômico o ônus social é praticamente nulo, enquanto que, nas zonas onde os elementos de infraestrutura de melhorias e serviços urbanos são precários o custo é baixo enquanto que o ônus social é elevado. Segundo ele:

Deve-se dizer que com a chegada de melhorias urbanas em áreas antes desprovidas, eleva-se seu preço econômico à medida que decai seu ônus social. No momento em que ocorre esse processo de valorização, essas áreas, antes acessíveis a faixas de remuneração mais baixa, tendem a expulsar a maioria dos locatários, os proprietários que não puderem pagar o aumento de taxas e impostos, transformando-se em zonas para as camadas melhor remuneradas. (KOWARICK, 2000, p.28)

Assim, o Estado é responsável, principalmente por meio de suas políticas públicas e de sua estrutura de regulação, por desempenhar função primordial na organização socioeconômica do espaço urbano. O Estado prove as condições gerais de produção e garante o processo de reprodução ampliado do capital.

O mercado imobiliário é elemento primordial para o entendimento da segregação sócioespacial. Diversos trabalhos (PACIONE, 2001; ARTHURSON; JACOBS, 2003; LIBERATO, 2007; COUTO, 2011) apresentam essa perspectiva como elemento central nos processos de exclusão sócioespacial. Dessa forma, o espaço em que determinado indivíduo vai se localizar deve concordar ao máximo com aquele socialmente aceito como sendo seu lugar de ocupação, o que leva os pobres para as periferias e os ricos para as áreas valorizadas.

Quem não está inserido no mercado imobiliário formal, somente tem acesso à moradia à margem da cidade. A urbanização brasileira é consequentemente caracterizada pelo permanente e crescente descompasso entre o lento crescimento das cidades e a rápida expansão de suas margens. (COUTO, 2011, p.8)

De acordo com Liberato (2007), a periferia vai abrigar preferencialmente a mão-de-obra que vai atuar na produção econômica da cidade, mas que “esses locais são carentes de benefícios urbanos, não tendo acesso aos bens, aos equipamentos e à própria cidade.” (p.99). De acordo com Moura (1994, p.61): “[...] as chamadas periferias são frutos de uma ação claramente orquestrada por parte de uma fração específica do capital imobiliário que, num determinado momento vislumbra as condições favoráveis para um produto específico: o lote popular.”

Considerando a economia política marxista, a terra possui uma renda entendida como sendo parte do excedente econômico global pago periodicamente aos proprietários dos terrenos em função da sua utilização. Trata-se assim de um fluxo de riqueza extraído da sociedade e direcionado aos proprietários fundiários. Esse processo é possível devido a não reprodutibilidade da terra e, principalmente, na existência da propriedade privada. (JARAMILLO, 2010 apud MAGALHÃES, TONUCCI, SILVA, 2011)

Apesar de a terra ser um bem de mercado, ela não é uma mercadoria comum. A terra não incorpora valor-trabalho (ao contrário da mercadoria manufaturada), o seu preço é condicionado é variável de acordo com a diferenciação das terras (localização, presença de infraestrutura, etc.) que permite valorizações diferentes das terras e, consequentemente, serem comercializadas objetivando o lucro por parte dos proprietários. A terra urbana possui assim uma renda diferencial que varia de acordo com sua localização referente a oferta de infraestruturas urbanas. Essa relação é descrita por Monte-Mór e Almeida (2011, p.256):

O solo urbano em si não produz valor, pois não demanda trabalho para se materializar, mas o ambiente da cidade sim, este demanda trabalho socialmente gasto para produzi-lo. Logo, este trabalho produz um valor.

Nesse sentido pode-se, seguindo a ideia de Marx (1989 apud BOTELHO, 2008), considerar a renda fundiária capitalista como mais-valia: produto de trabalho excedente não pago a quem produziu. A valorização ou desvalorização das terras não depende da terra exclusivamente, mas de seu uso e do trabalho humano realizado nas infraestruturas. Essa mais-valia é então apropriada pela classe dos proprietários fundiários, devido ao monopólio que exercem sobre a propriedade da terra.

Segundo Monte-Mór e Almeida (2011) o termo mais-valia fundiária é entendido como uma expressão do excedente que é induzido, preferencialmente, pelo poder público e que compõem o preço da terra urbana, sendo apropriado em forma de renda pelos proprietários de terra. É o que Magalhães, Tonucci e Silva (2011, p.19) chamam de “sobrelucro espacial apropriado pelos proprietários de terra”.

Assim tem-se que o funcionamento da dinâmica imobiliária está ligado a apropriação da mais-valia fundiária pelos proprietários de terra. No entanto, esta classe para ter acesso ao lucro deve vender ou alugar a terra para alguém, em especial a indivíduos com maior poder aquisitivo que possam pagar um valor elevado. Dessa forma, o mercado imobiliário cria a seleção de moradia por meio do lucro que podem obter.[3]

Monte-Mór e Almeida (2011, p.282) lembram que a dinâmica imobiliária está relacionada à dois sistemas, o primeiro do valor de uso, e complementarmente, o sistema do valor de troca. Como bem lembra os autores, o valor de troca é que “ordenará o acesso e a distribuição do uso do solo, o que acaba por promover distorções”.

Com o funcionamento do mercado imobiliário como descrito, observa-se que o problema habitacional transparece. Enquanto que os interesses por habitação da população de renda elevada é satisfeito, os segmentos de baixa renda, não tendo acesso à produção capitalista da moradia, “necessitam buscar outras formas de produzir habitação” (CAMPOS, 2011, p.66)

Dois fenômenos de diferenciação espacial decorrem simultaneamente a partir do efeito da acumulação de capital imobiliário: as zonas mais bem equipadas em infraestrutura urbana, que concentram as zonas residenciais das classes dominantes e as zonas de negócio e as zonas menos equipadas, concentrando a população de baixa renda, que tende a se estabelecer em locais cada vez mais distante em relação às primeiras e que apresentam uma suboferta estrutura em relação aos recursos e serviços urbanos. (CAMPOS, 2011, p.66)

A porção do espaço para qual é destinada essa população excluída é uma consequência dos “fluxos dos interesses imobiliários” (KOWARICK, 1980). Assim, esses fluxos contribuem muito para a expansão da malha urbana não em sua totalidade, mas ocupando o espaço nas áreas centrais e em seus entornos, as favelas, e para as áreas mais distantes do centro, os loteamentos populares representam os locais de moradia daqueles que não possuem recursos financeiros para consumir. É desse modo exposto por Jaramillo (2010, p.224 apud MAGALHÃES, TONUCCI, SILVA, 2011, p.21) que “o  livre jogo dos preços mantém e agudiza a segregação sócioespacial e impõe usos que com frequência são maléficos.”

Diante do exposto, a afirmação “criam-se, aparentemente, duas cidades” (Corrêa, 2010, p.177), que de aparente não tem nada, pois é a expressão de uma realidade calcada na segregação e exclusão sociais, econômicas, políticas e culturais entre indivíduos reais. De um lado, os integrantes dos segmentos médio-alto e alto com acesso à cidade e a tudo que ela pode oferecer, de outro, os excluídos da e pela cidade. Mas não se pode desconhecer que os integrantes dos dois segmentos “[...] são parte integrante da mesma unidade, de uma unidade contraditória, cujas contradições se viram agravadas e expressas com maior nitidez nas áreas segregadas dos setores seletivos, de um lado, e das periferias populares, de outro.” (CORRÊA, 2010, pp.177-178)

Sobre isso, Couto (2011, p.3) esclarece que:

A exclusão social tem a capacidade de atingir tanto pessoas quanto territórios de forma que, sob algumas condições, países, regiões, cidades e bairros inteiros são excluídos, relegando a tal exclusão a maioria ou a totalidade de suas populações. É Nesse aspecto que o sistema capitalista se manifesta nas cidades, pois de um lado a cidade se transforma em mercadoria e de outro se torna precária, todas inseridas num sistema que inclui e exclui, ao mesmo tempo, a sociedade e o espaço.

Conforme Maricato (2003) as áreas periféricas, ocupadas pela população excluída, ou seja, a “Cidade Informal” é negligenciada pela governança pública, que tende a favorecer as áreas que integram a “Cidade Formal”. Liberato (2007, p.15), ao analisar a cidade de Belo Horizonte, afirma que existe “a oficial, na qual circulam os cidadãos, e a não oficial, restrita a grupos e/ou segmentos sociais dela e por ela excluídos.” Nessa mesma direção, Milton Santos (1982, p.22) apresenta a contribuição de Friedmann (1961) que declarou: “O setor popular está dentro da cidade sem fazer parte dela”.

Kowarick (1980), e também, Corrêa (1993) afirmam que tais áreas da cidade onde estão localizados os excluídos não apenas os abriga, mas representam importante papel para a reprodução dessa situação, contribuindo para manter a sociedade de classes e suas inerentes fragmentações. A periferia, consequência do modelo econômico vigente, formada pelos excluídos é uma fonte de reprodução da estrutura capitalista que mantém essa população submetida a exploração e à espoliação. A segregação é (re)produzida por uma lógica global proveniente do capitalismo moderno. Assim, Lefebvre (2001, p.99) adverte que “não podem ser tomadas por efeito nem de acasos, nem de conjunturas locais”.

Harvey (1980) afirma que a proximidade e a acessibilidade são aspectos de grande importância no sistema intraurbano, em especial para compreender a dinâmica de uso e ocupação do solo da cidade e da promoção da exclusão sócioespacial. Essa proximidade e acessibilidade dizem respeito, especialmente, aos recursos (naturais ou artificiais) utilizados para a produção e reprodução da vida. O autor destaca o bem público como um recurso, que, em tese, deveria ser disponibilizado para todos e usufruído por todos os membros da sociedade. No entanto, Harvey (1980) apresenta a existência do “bem público impuro”. Segundo ele a localização de determinados serviços de utilidade pública implica, necessariamente, em seu uso de forma desigual, uma vez que a proximidade e a acessibilidade só podem ser obtidas mediante um preço. Nas palavras do autor: “[...] muito do que ocorre pode ser interpretado como uma tentativa de organizar a distribuição dos efeitos externos para obter vantagens de renda. Na medida em que essas tentativas são bem sucedidas, elas são uma fonte de desigualdade.” (HARVEY, 1980, p.46)

É explícito, conforme colocado por Boni (2011), que a produção dos espaços públicos e a alocação dos recursos possuem lógicas que estão distanciadas da busca de justiça social. Os serviços urbanos não são ubíquos, ou seja, estão espacialmente selecionados, cumprindo uma lógica para manter sua permanência. Como lembra Santos (1978, p.81): “Em nome do progresso e à custa de uma injustiça cada vez maior, os recursos são distribuídos de maneira a beneficiar aqueles que já são ricos“.

A distribuição desigual desses serviços na cidade determina demandas diferenciadas nos preços e usos do solo, potencializando mais investimentos em localizações já dotadas de infraestrutura.  Singer (1982) ressalta a importância do papel do Estado no provimento de boa parte dos serviços urbanos essenciais às empresas e utilizados pela população:

Sempre que o poder público dota uma zona qualquer da cidade de um serviço público, água encanada, escola pública ou linha de ônibus, por exemplo, ele desvia para esta zona demandas de empresas e de moradores que anteriormente, devido à falta do serviço em questão, davam preferência a outras localizações. Estas novas demandas, deve-se supor, estão preparadas a pagar pelo uso do solo, em termo de compra ou aluguel, um preço maior do que as demandas que se dirigiam à mesma zona quando esta ainda não dispunha do serviço. Daí a valorização do solo nesta zona, em relação às demais. (SINGER, 1982, p. 34)

A qualidade da oferta destes serviços básicos de consumo coletivo na percepção de Singer (1982) está diretamente atrelada ao valor que a infraestrutura implantada pode propiciar na reprodução do capital. O Estado agrava sistematicamente os desníveis econômicos e sociais na cidade quando dispõe os serviços urbanos em função dos grupos de médio e alto rendimento, promovendo escassez quando não se direciona aos lugares de concentração  dos grupos de menor rendimento.

Kowarick (1980) também apresenta o papel desempenhado pelo poder público na diferenciação dos preços da terra. Consequentemente, na produção de segregação sócioespacial, uma vez que, com os investimentos que realiza atua diretamente no processo de especulação imobiliária. Segundo o autor, ao gerar uma melhoria em determinada porção do espaço, cria, ao mesmo tempo, desapropriações de indivíduos que são expulsos de seus locais de moradia para dar lugar aos grupos abastados que podem pagar o preço da especulação imobiliária. Tem-se, assim, que tais “transformações urbanas só podem se realizar como um rolo compressor que esmaga todos aqueles que não têm recursos para conquistar os benefícios injetados na cidade” (KOWARICK, 1980, p.82).

Sobre o acesso aos recursos, verifica-se que “o acesso é facultado pela capacidade de pagar” (BAUMAN, 1999, p.28), ou seja, os grupos com maior capacidade financeira acabam garantindo também vantagens em relação ao acesso, enquanto que as classes populares são obrigadas a ocupar lugares mais isolados, ficam sem acesso. Bauman (1999, p.29) afirma que “o resto da população [excluídos] se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento”.

Nesta mesma linha, Bayer, McMillan e Rueben (2001) destacam que a pobreza e o isolamento do corpo principal da sociedade conduzem a implicações sociais de grande impacto, agindo como um impeditivo ao acesso a infraestrutura básica e aos serviços públicos de qualidade, vivendo no desemprego e no subemprego.

A segregação ocorrida é então mantida por interesses claramente econômicos. Ainda de acordo com Harvey (1980) as políticas sociais do Estado são diretamente elaboradas para garantir a existência de uma distribuição de renda desigual em um determinado sistema social e completa: “Parece que os ‘mecanismos ocultos’ de distribuição de renda num sistema urbano complexo estimulam, usualmente, as desigualdades, mais do que as reduzem.” (HARVEY, 1980, p.41) Assim, os investimentos de maior valor são concentrados espacialmente nas áreas nobres, gerando valorização destas e, conduzindo a uma maior acumulação de riqueza.

O capital acumula onde prevê melhor retorno, logo, aqueles com recursos, sociais e financeiros, são atraídos para áreas recém desenvolvidas ou redesenvolvidas, deixando as outras áreas cada vez mais pobres para sofrer com grande deterioração e abandonamento. (GLASMEIR; FARRIGAN, 2007, p.228).

Todo o processo descrito é trabalhado por Jean Lojkine (1981) que considera a existência de três tipos de segregação socioespacial na cidade capitalista. 1) a primeira segregação ocorre no nível da habitação, onde predomina a lógica de deportação das populações de baixo rendimento, opondo-se à lógica do “emburguesamento” de áreas nobres e/ou renovadas. 2) a segunda segregação é visível no nível de acesso e de qualidade dos equipamentos coletivos, em que é destinado a população excluída “subequipamentos”, opondo-se ao “superequipamento” dos conjuntos da alta classe. 3) Ainda existe a segregação no nível do transporte domicílio-trabalho, obrigando as classes de menor rendimento utilizar precários transportes coletivos que contrastam com o uso do automóvel particular pelos burgueses.

Conforme Castilho (2011) esse processo está relacionado com a capacidade do sistema capitalista em mercantilizar tudo, inclusive o espaço, sendo esse também um equipamento de reprodução ampliada do capital, justificando os investimentos em espaços de maior interesse econômico, priorizando a “valorização capitalista do espaço” sobre o processo de “valorização social do espaço”.

De acordo com Santos (1978, p.81):

Cada homem vale pelo lugar onde está. O seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território [...] A possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. (SANTOS, 1978, p.81)

Assim, a posição social de determinado indivíduo é reflexo de sua localização espacial. A organização espacial, por expressar a sociedade, é, como ela, hierarquizada. A sociedade, ao impor a hierarquia, determina quais indivíduos/grupos estarão na parte superior e inferior da mesma. Couto (2011) destaca que “A segregação sócioespacial é uma das características mais marcantes da exclusão social, pois o espaço é separado de acordo com o nível de renda e prosperidade econômica”.

Tem-se, então, que a posição social de determinado indivíduo é refletida no espaço físico em que está situado. O espaço se torna hierarquizado de acordo com a própria hierarquia da sociedade. Segundo Bourdieu (1997, p.158) “[...] não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais.

Sobre isso Soja (2008, pp.1-2) afirma:

O lugar de residência de uma pessoa já determina grande parte de suas oportunidades e condições. Também, o local de vida já é sugerido pela classe social da pessoa em uma estrutura de sociedade capitalista. Essas estruturas socioespaciais encaminham para uma injusta distribuição de todo tipo de bens, como acesso a condições básicas de habitat, serviços públicos, infraestrutura, educação, trabalho.

Dessa forma tem-se o espaço atuando como instrumento de separação social. Assim, revela-se a existência de um componente espacial da exclusão social. Mais do que sua expressão espacial de segregação, o espaço atua na produção de exclusão social. Pode-se falar da existência de uma topografia simbólica do espaço, em que se destina aos grupos excluídos os espaços coerentes à eles, muitas vezes representando áreas altamente precárias e distantes dos grupos dominantes.

A segregação contribui para o aumento da distância física colaborando, consequentemente, para o aumento da distância social, fundada na lógica urbana desigual. (MARICATO; MENDONÇA, 2010) Essa separação, tanto no meio social, quanto no físico e suas consequências podem ser observadas nas cidades em diversas formas, não apenas no meio físico, como a periferização da pobreza, na formação de enclaves territoriais, mas também através das de barreiras simbólicas, que apresentam a existência de uma “monopolização da honra social das classes altas ou da institucionalização da desonra social dos excluídos” (RIBEIRO, 2005, p. 50), criando experiências do espaço urbano distintas.

Ribeiro (2005) destaca que acontece ainda uma separação nos códigos de sociabilidade de cada grupo social, isolados espacialmente, aumentando o abismo existente entre os grupos e contribuindo para a manutenção e elevação da distância entre eles. É exatamente esse sentimento que Savarí (2004, p.40) capta de um de seus entrevistados quando afirma: “Estou coberto de tatuagens, estou todo escrito, penso que é uma questão do lugar que eu vivo”.

Paugam (2003) também capta a questão do espaço na produção de uma “identidade negativa” em que os indivíduos herdam do espaço que residem um estatuto de desvalorização. Segundo o autor: “Os indivíduos têm consciência de herdar um estatuto desvalorizado quando residem num conjunto habitacional – uma comunidade – cuja reputação é má” (PAUGAM, 2003, p.129). O lugar de habitação do indivíduo representa uma construção no consciente coletivo, determinando uma forma de conhecimento social “espontânea, generalista e muitas vezes superficial da realidade” (PAUGAM, 2003, p.141), mas que exercem poderosa força coercitiva sobre os indivíduos e/ou grupos.

Dessa forma, cada vez mais, os contatos e interações entre membros de classes diferentes se tornam inexistentes e aumentam cada vez mais as distâncias, tanto sociais como territoriais, “que separam nossas metrópoles, os de cima dos de baixo, os privilegiados dos excluídos”. (RIBEIRO, 2005, p.67)

Essa separação socioespacial que ocorre nas cidades contemporâneas representa uma das formas de organizações do espaço capitalista, que tende a separar e isolar as classes. Dessa forma, é formado a territorialização, no espaço das cidades, desses grupos: os incluídos e os excluídos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão sobre a segregação espacial deve merecer mais atenção por parte dos geógrafos. Tema tão presente nas cidades que são estudadas, a abordagem referente à segregação merece destaque. Infelizmente é um tema que o ideal seria dizer que é passado, mas permanece-se tão atual. Diz respeito a milhares e milhares de pessoas que são obrigadas a estarem segregadas, confinadas em espaços determinados, especialmente, por sua condição socioeconômica.

É interessante destacar aqui a contradição inerente do processo de segregação espacial. Ao mesmo tempo em que a cidade é segregada, partida e divida esse é um processo global, que homogeneíza todas as cidades. Também, a cidade é criada de diversos espaços mais ou menos semelhantes que integrados, formam a totalidade da cidade. São isotopias dentro de uma heterotopia. Essa contradição da diferenciação e da homogeneização é importante ter em mente, pois é o que garante a complexidade do fenômeno.

Com a revisão conceitual sobre o tema percebe-se que muito tem sido escrito, inclusive permitindo-se deslocar de um paradigma ao outro, sem, no entanto, perder o foco da questão. Essa característica se deve a própria natureza da exclusão e da segregação espacial. É polissêmica, e por isso, é pluriepistemológica.

Embora tenha sido um tema de extensa produção, tanto de reflexão teórica como de pesquisas empíricas, ainda não se esgotou o campo da pesquisa. Muito foi avançado nas diversas formas que a segregação espacial assume nas cidades, mas ainda é necessário um maior investimento em torno das questões que geraram a segregação e suas consequências, bem como também investir na produção de uma alternativa a esse cenário – fato que a ciência tem se negado a fazer, mas que, com Lefebvre (2010), parece estar retornando.

 

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Autor: Thiago Canettieri, Thiago Pereira e Rita de Cássia Liberato